quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Índice


Literário: Um blog que pensa


(Espaço dedicado ao Jornalismo Literário e à Literatura)


LINHA DO TEMPO: Onze anos, onze meses e dois dias de criação.


Leia nesta edição:


Editorial – Garimpeiros de histórias.

Coluna De Corpo e Alma – Mara Narciso, crônica, “Araçazeiro, não!”.

Coluna Verde Vale – Urda Alice Klueger, crônica, “Centelhas de vida”.

Coluna Em verso e prosa – Núbia Araújo Nonato do Amaral, poema, “Meu”.

Coluna Porta Aberta – Frei Betto, artigo, “A força perene da dramaturgia”.

Coluna Porta Aberta – Sergio Geia, crônica, “Que você sinta o mesmo prazer”.

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CITAÇÃO DO DIA:

Fenômeno único? 

A vida apareceu sobre a Terra. Qual a probabilidade de que isso já tivesse ocorrido antes? Não está excluída, face à estrutura atual da biosfera, a hipótese de que o acontecimento decisivo não tivesse ocorrido senão uma só vez. O que significaria que sua probabilidade a priori seria quase nula. Esta ideia repugna a maior parte dos homens de ciência. Com um acontecimento único, a ciência nada pode dizer nem fazer.

(Jacques Monod, livro "O Acaso e a Necessidade").



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Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Editorial - Garimpeiros de histórias


Garimpeiros de histórias


O jornalista e o escritor têm muito mais coisas em comum do que as pessoas de fora desses meios podem supor. E não somente por terem na palavra escrita a ferramenta dos seus respectivos ofícios. Ambos são, sobretudo, garimpeiros diligentes de histórias, com as quais moldam suas respectivas produções: o jornalista, para escrever uma boa reportagem. O escritor, para produzir romances, contos e novelas que emocionem multidões e as façam refletir.

Há, claro, também várias diferenças. Daí serem atividades distintas, a despeito das semelhanças (mas não igualdades) que possuem. O jornalista tem, entre outras coisas, tempo restrito para narrar suas histórias, adstrito ao “deadline”, ou seja, ao horário de fechamento das edições. Ademais, exige-se, dele, extremo rigor no que se refere à veracidade. Sua reportagem precisa ser a mais lídima expressão da realidade. A história contada tem que ser verdadeira nos mínimos detalhes. A menor invenção, desvirtua a matéria e a invalida. Não se admitem mentiras em jornalismo, sob pena do profissional dessa área perder o que pode ter de mais precioso: credibilidade.

O escritor, por seu turno, decide sozinho (salvo raras exceções) quanto tempo vai precisar para elaborar sua narrativa. Isso, claro, a menos que tenha contrato firmado com sua editora, estipulando prazo para a entrega do seu livro. A história que se propõe a contar pode até ser baseada em fatos reais, mas não precisa, necessariamente, basear-se na realidade. Poder é uma coisa e ser obrigado a é outra. A imensa maioria das histórias não se baseia em fatos reais. Compete ao escritor criar tanto os personagens, quanto cenários e circunstâncias que existam apenas na sua cabeça e, no entanto, sejam verossímeis. A condição é que, no mínimo, façam com que os leitores “desconfiem” que se trate de fatos.

Há outros tantos diferenciais entre estes dois tipos de redatores, ora favorecendo um, ora o outro. A reportagem, ou seja, o texto jornalístico, por melhor que seja escrita, tem curtíssima durabilidade. Afinal, o jornal “nasce” por volta das quatro horas da madrugada, quando chega às bancas e “morre” por volta do meio-dia.

Com o advento da internet e dos jornais eletrônicos, essa “morte” é ainda mais prematura. Salvo se a reportagem for tão excelente, a ponto de ser candidata a algum prêmio jornalístico (o Esso, por exemplo, que é o mais prestigioso deles, ou o Comunique-se), o texto será logo, logo esquecido. As pessoas podem, até, se lembrar da história narrada, mas raramente se lembrarão de quem a narrou.

Já o escritor, nesse aspecto, leva nítida vantagem sobre o jornalista. Caso a sua criação seja, de fato, memorável, será lembrada por décadas, séculos, até por milênios, ou seja, por muito tempo depois da sua morte. Um livro dificilmente “morre”, caso seja bom. Pode permanecer “adormecido” por muito tempo, esquecido pelos leitores, mas em determinado dia, por força do acaso ou de alguma fortuita circunstância, tende a ressurgir. Volta e meia topo, nos sebos que frequento (e há anos tenho esse saudável hábito) com obras há muito esquecidas. Quando boas, faço a minha parte para promover sua ressurreição. E geralmente dá certo.

Claro que em tantos outros aspectos, o jornalista leva vantagem sobre o escritor. Por exemplo, o jornalismo é, há já cerca de dois séculos, uma profissão, o que confere certa respeitabilidade e, principalmente estabilidade financeira a quem milita no meio.

Já o escritor... Qualquer pessoa que escreva e se aventure no mundo das letras pode se autonomear como tal, mesmo que não o seja. Não se exige nenhum diploma para se exercer essa atividade. Desde que o sujeito escreva um livro qualquer e encontre quem esteja disposto a publicá-lo, pode se considerar um “escritor”.

As duas atividades, porém, podem ser complementares (e via de regra, são). Inúmeros dos principais escritores, mundo afora, frequentam ou já passaram, em alguma fase de suas vidas, por redações de jornais e revistas. Hoje, mais do que nunca, isso acontece com enorme frequência.

Você pode ser, ao mesmo tempo, jornalista e escritor, sem que uma atividade atrapalhe a outra. E é até desejável que o seja, desde que você não misture as duas coisas, quer na concepção das histórias, quer na linguagem adotada. O jornalista lida com fatos, frios, secos, nus e crus. O escritor, por seu turno, pode até se valer de histórias que realmente ocorreram, mas sua “praia” é a criatividade, a fantasia, o insólito, a subjetividade. A linguagem do primeiro tem que ser, necessariamente, objetiva. A do segundo terá mais valor quanto mais subjetiva puder ser.

Paradoxalmente, contudo, as histórias mais surpreendentes e surreais são as da vida real, ou seja, a matéria-prima do jornalista. Nenhum escritor, por mais criativo e fantasioso que seja, será capaz de competir, em loucura, mistério, maldade, bondade etc. etc.etc. com a realidade. Nas reportagens, ao contrário de nos romances, contos e novelas, quem se dá bem, normalmente, é o vilão, em detrimento do herói. Raramente acontece um “happy end”, um final feliz, e quando este ocorre, não desperta tanta (ou nenhuma) atenção do leitor. Já na literatura... E isso, mesmo jornalistas e escritores serem garimpeiros de histórias. Ambos encontram, cotidianamente, na vida real, esse precioso diamante. A diferença, no entanto, está na “lapidação”.


Boa leitura!

O Editor.


Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk

Araçazeiro, não! - Mara Narciso


Araçazeiro, não!


* Por Mara Narciso
 
Depois da curva da estrada tem um pé de araçá, sinto vir água nos olhos, toda vez que passo lá!” (Renato Teixeira)
 
Desde a tenra infância até a juventude, minha vida era Pentáurea Clube todo domingo. Em seu território não tinha Psidium cattleianum, araçá do Tupi: planta que tem olhos. Minha memória mais remota dessa goiabinha do cerrado vem da fazenda Aliança, do meu Tio Indalício Narciso, a 6 km da cidade. Lá a gente comia essa delícia. Era numa baixada de verde intenso, um descampado empastado, onde eu sumia andando a cavalo, e até caí de um deles, em cima do capim. Havia naquele lugar, quase um pomar de pés de araçá, um arbusto com fruto de cheiro e sabor sui generis, entre o azedo e leve adocicado, pequeno e verde claro, mesmo maduro. Quando ficava de vez, a gente comia, porque menino daquele tempo não rejeitava nada.
 
Ramificado desde a base, o arbusto lenhoso atrai animais e pode ser plantado em áreas degradadas, pois cresce rápido. Também ouvi falar que podem ser feitos suco e doce de araçá. No Mercado Central, de vez em quando avistávamos araçás, mas, Milena, a minha mãe, raramente os comprava, pois, frágeis, chegavam em mau estado.
 
Depois que eu me casei, Milena plantou em seu quintal um pé de araçá de qualidade, do tipo enxertado e criado em estufa, mais frágil que o curraleiro, com frutos maiores, mais doces e mais amarelos. Produzia bastante, e por ser molhado todo dia, dava frutos quase o ano inteiro. Os quatro netos mal deixavam os coitados amadurecer, comendo araçá de vez. Era entrar na casa e ir direto ao pé, pegar o que tivesse “inchado”. A avó não os reprimia, deixando-os livres para fazer o que quisessem desde que não desperdiçassem. Depois surgiram mais dois pés, originados da árvore mãe.


 
Há mais de um ano ganhei do meu primo Cláudio Narciso um pé de araçá de flora, um amor de planta que jamais será um araçazeiro. Eu o instalei no meu jardim, bem no centro do canteiro, num lugar de honra. Mimava a plantinha diariamente, molhando duas vezes ao dia, pois, devido ao grande calor que faz aqui, e a sensibilidade do pezinho, na parte da tarde ficava murcho. Com os cuidados, foi ficando fortinho, e após seis meses, começou sua primeira floração. Fernando, meu filho, dizia que eu estava gostando da plantinha mais do que de gente. Quando as flores caíram, surgiram os araçazinhos, sendo que dez vingaram, e desde então passei a namorar o crescimento deles. Vê-los desenvolver acariciava meu espírito materno e dedicado.
 
Num dia de dezembro chegaram os pintores. Pedi cuidado com pé de araçá. Um dos auxiliares jogou Thinner sobre o infeliz, que ficou com algumas folhas danificadas. Lavei folha a folha, delicadamente, com esponja e fiz nova recomendação. Outra vez apareceu uma escada junto dele. Só retiraram após meu pedido. Mas o pior aconteceu no dia em que pintaram o portão. A pistola, indiretamente, borrifou tinta sobre o pé de araçá e o estava matando. Fiquei chocada ao ver o coitado murcho, todo pintado de rosa pêssego. Implorei para que tentassem protegê-lo. Puseram uma lona preta e foi pior, devido ao calor. No final do dia estava tudo perdido. De nada adiantaria chorar. Lavei o enfermo em estado deplorável com bastante água e só restava me acostumar com o fato. Já enroladas desde o começo do desastre, com o passar dos dias, as folhas foram secando e quase todas caíram. Dos dez araçás, sobrou apenas um, que passei a cuidar como um ovo de indez. Tentei esquecer e esperar pelo efeito das chuvas, que neste ano vieram mais volumosas, depois de quase sete anos de seca.
 
A natureza vegetal respondeu logo e o pé de araçá brotou, cresceu e em dois meses deu flor. Estavam ali novos frutinhos e o araçá maior, único sobrevivente, após três meses de vida estava quase maduro. Pensei em protegê-lo dos passarinhos e numa manhã, quando fui vistoriá-lo, tinha sumido. Pensei que alguém o tivesse pegado, mas olhando para o chão, vi que estava sobre a grama. Peguei enternecida aquela joia, lavei, tirei foto, mostrei ao meu filho, e então, gulosamente, em duas bocadas sorvi o sabor daquela maravilha com gosto de infância. Tem sabor melhor do que aquele deixado numa boa curva do caminho? Agora é esperar pela segunda safra, que já começa a mostrar a sua carinha redonda, verde e com um olho na parte oposta ao caule.


* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”



Centelhas de vida - Urda Alice Klueger


Centelhas de vida

* Por Urda Alice Klueger

Era uma vez, lá no Paraíso Terrestre, quando Deus criou Adão e Eva e todos os animais, criou Ele, também, um casal de cachorrinhos. Viviam todos, lá, muito felizes, e se não fosse a preocupação de Eva e Adão de provarem dos frutos da Árvore do Bem e do Mal, a festa lá ainda não teria acabado, e ninguém passaria nenhum tipo de privação neste mundo.

Bem, o fato é que lá, junto com Adão e Eva, havia um casal de cachorrinhos, e que enquanto Eva era tentada pela Serpente, os cachorrinhos, muito naturalmente, tiveram seus primeiros filhotes, que tiveram outros filhotes, que tiveram outros filhotes, até que um dia, milhares de anos depois, nasceram os dois cachorrinhos que vivem na rua do lado da minha casa.

Eu comecei a vê-los no começo deste inverno que está tão frio: dois cachorrinhos amarelos, dos mais legítimos vira-latas, a saírem para a entrada da rua, bem na minha esquina, para ficarem ao sol que chega antes na esquina do que na casa deles. Pequenas centelhas de vida explodindo de inteligência e alegria, eles sabem exatamente a hora em que o sol chega a um pedaço quadrado de asfalto na saída da rua, e lá vêm, lépidos e alegres, a balançarem seus rabinhos na efusão gratuita de viver, para aproveitarem o calor fraco do sol e se aquecerem.

Como se divertem os dois bichinhos! Eles ainda são cachorrinhos muito novos, mal e mal deixaram de ser bebês, e a idade adulta deve vir só lá pelo verão. Estão naquela fase em que os cachorrinhos gostam de roer os chinelos das pessoas, e onde a alegria é infinita dentro dos corpinhos peludos e inquietos de tanta vida. Naquele quadrado de sol da esquina da minha rua, eles se aquecem com os focinhos erguidos, e brincam, alternadamente, brincam um com o outro tendo a certeza de que a coisa mais importante deste mundo é brincar. Eles conhecem todas as crianças da redondeza, e todas as crianças os conhecem – quando elas passam, cedinho, em direção da escola, eles interrompem suas brincadeiras para fazerem festa às crianças, e acompanham-nas um bom estirão pelas calçadas, até lembrarem-se que têm seu quadrado de sol no mundo, e voltarem à minha esquina.

Conhecem gente grande também: recentemente, quis saber mais sobre eles. Minha amiga Margarida contou-me que se chamam Toco e Bilú, e Margarida é uma mulher séria, tesoureira de um banco, o tipo de pessoa que a gente não pensa que sabe o nome de dois cachorrinhos de nada, duas centelhazinhas de vida que surgiram no começo do inverno num quadrado de sol. Depois que Margarida contou-me até o nome deles é que vi o quanto estão populares em toda a vizinhança.

Sabedora, agora, dos seus nomes, ontem de manhã fui lá falar com eles. O dia estava nublado, e o pedaço de sol não tinha aparecido na esquina. Os cachorrinhos, porém, sabiam perfeitamente onde ele iria surgir, se surgisse, estavam lá sentados com cara de aborrecidos pela falta daquele amigo Sol que os tem aquecido desde que se lembram, na sua curta vida. Eles ainda não me conheciam – sempre os observo de longe, de dentro da garagem – e se mostraram indiferentes até que chamei:
– Toco!

Na hora descobri quem era Toco, pois ele veio pular em mim arrebentando de alegria, e foi só chamar “Bilú”, para que Bilú também entrasse num paroxismo de prazer e de pulos, ambos inteiramente cônscios da sua identidade neste mundo. Nasceram faz pouco tempo: da vida só conhecem o quadrado de sol e as crianças que passam, mas sabem muito bem como cada um se chama, e como ficam gratuitamente felizes quando um adulto se digna dar-lhe o pequeno nome que é quase tudo o que possuem!

Eles pularam e me lamberam até que eu tive de ir-me. Pelo retrovisor do carro, fiquei vendo como, depois da alegria de terem sido reconhecidos por um adulto, esqueceram-se de que o quadrado de sol não tinha vindo, naquele dia, e passaram a brincar com a mesma alegria de quando se sentiam aquecidos!

Se Adão e Eva não tivessem acabado comendo do fruto da Árvore do Bem e do Mal, cachorrinhos como Toco e Bilú nunca sentiriam frio, e nunca precisariam ficar brincando num quadrado de sol na esquina de uma rua, e não haveria na minha vida a luz das suas pequenas centelhas de vida. Até que Adão e Eva não erraram de todo!

Blumenau, 04 de agosto de 1996.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).



Meu - Núbia Araújo Nonato do Amaral


Meu


* Por Núbia Araújo Nonato do Amaral


Deito sobre o seu peito
arfante
e me estico toda
para me fazer
inteira.
Presto atenção
quando respiras
e leio os seus
intervalos.
Quando passas
a língua nos lábios
sorrio por dentro
pois sei que
está pronto
pra mim.

* Poetisa, cronista e contista e colunista do Literário






A força perene da dramaturgia - Frei Betto


A força perene da dramaturgia


* Por Frei Betto


O teatro é um recurso privilegiado de formação humana. Até porque, graças à representação no palco, pode ser entendido por quem não é alfabetizado. Ele retrata a nossa natureza lúdica, essa multiplicidade de seres que nos povoam. Sou agora o palestrante sisudo que finge saber mais do que realmente conhece. Porém, reside em mim uma multidão: o intelectual e o crente, o cartesiano e o insensato, o adulto e a criança. No palco, revisto-me de um outro que não sou eu e, no entanto, eu é que lhe dou vida, dicção, movimento e emoção.
O teatro é um ritual mágico, transfigurador do real, espelho que nos devolve a nós mesmos. Sou Édipo e Creonte, também Jocasta, Electra e Medeia.
Teatro vem do grego theátron – lugar onde se contempla. E contemplação não é sinônimo de observação. É uma experiência mistérica, endógena, em que me deixo invadir pelo objeto contemplado. O contemplativo é o místico, apaixonadamente habitado pela divindade. No teatro, são os personagens que despertam seus homônimos escondidos em minha subjetividade. Neles contemplo a mim mesmo. Meu lado trágico e meu lado cômico. O que trago de divino e perverso.
Nossos arquétipos estão delineados nas grandes obras teatrais. Não foi em vão que Freud recorreu a elas para estruturar sua etiologia psíquica. No teatro importa o ser, o que não é tão acentuado no cinema e na telenovela. Por isso, só no palco pode haver monólogo, reflexo desse nosso contínuo monólogo interior.
Como exemplo de diversidade cultural propiciada pela dramaturgia, atenho-me à Grécia do século V, aos fundadores do teatro clássico: Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Aristófanes.
De Ésquilo nos restaram “As suplicantes”, “Prometeu acorrentado”, “Os persas”. Foi quem inventou a tragédia. Arcaico e religioso, nos forneceu a primeira luz do que seja a democracia. Encenada por volta de 468 a.C., “As suplicantes” mostra a população de Argos – ou seja, a “demo” – concedendo asilo (“kratos”, o poder de decidir) às Danaides, que haviam assassinado seus maridos na noite de núpcias. Ali, pela primeira vez, os dois termos aparecem unidos. Já no fim do século V a.C. o substantivo definia o regime ateniense.
Sófocles acreditava no poder dos deuses e na predestinação. Seu principal personagem é o destino. Destaca-se com o maior trágico da antiguidade grega por seu “Édipo Rei”, mais tarde completado pela peça “Édipo em Colona”. Vamos encontrá-lo na psicanálise, mas não há literatura criada do nada. Os primórdios de Édipo estão no Canto IV da “Ilíada” e no IX da “Odisséia”, e na peça “Os sete contra Tebas”, de Ésquilo.
Por força do destino traçado pelos deuses, ele mata o pai e casa-se com a mãe. Mas é muito mais do que um mero triângulo conflitivo hoje utilizado na telenovela para atrair atenção do público. Édipo abrange todos os campos da experiência humana: a relação do homem com o divino (o oráculo); o poder (a realeza) e a família. Ou seja, piedade, autonomia e afetividade.
Antígona é a mulher que prefere dar ouvidos aos deuses que aos tiranos. Eurípides é o autor de “Electra”, “Medéia”, “Sísifo”, “As troianas”, “As bacantes”, entre outras peças. Ao contrário de Sófocles, ele introduz a dúvida, convida-nos à crítica diante dos deuses, das autoridades, das supostas verdades geradas pela imposição. Feminista avant la lettre, realça as mulheres como seres fortes, dotados de coragem e ternura, ódio e paixão, ao contrário dos homens, débeis e covardes. Suas peças primam pelo retrato psicológico dos personagens e exaltam o amor e suas várias manifestações: apaixonado, conjugal, materno. Ifigênia abre mão da própria vida para favorecer a expedição à Tróia; Medeia vive intemperadamente suas paixões amorosas.
Aristófanes polemiza, introduz a sátira social, faz da arte uma arma de crítica política. Em Os cavaleiros desmoraliza os demagogos. Em As rãs mostra um concurso entre Ésquilo, Sófocles e Eurípides, os três grandes trágicos. Satiriza Eurípides e exalta Ésquilo. Em As nuvens, critica os metafísicos e os sofistas, sem poupar seu amigo Sócrates. Ridiculariza a justiça ateniense em As vespas e, em Lisístrata, a greve sexual das mulheres força atenienses e espartanos a fazerem um acordo de paz.
* Frei Betto é escritor, autor de “O que a vida me ensinou” (Saraiva), entre outros livros.





Que você sinta o mesmo prazer - Sergio Geia


Que você sinta o mesmo prazer



* Por Sergio Geia

Dá vontade de dizer pra meio mundo que a felicidade é possível e você encontra ali, bem pertinho do mar”



É isso. Simples. Ou, talvez isso. Ou, por isso escrevo essas coisas hoje: para você beber do mesmo prazer. Chego em casa depois de um passeio na praça, ligo o computador, começo a escrever, não posso perder o paladar que me inspira. Você pode achar que é falta de assunto. Seu direito. Meu direito. De dizer o que sinto, se ele extrapola o meu sentir e suplica viagens, voos nesse céu redondo de felicidade.

Toda experiência artística é subjetiva, e pizza, como obra de arte, permite múltiplas avaliações. Sim, entendo e até poderia desistir; mas não. Denomino a experiência com a mesma expressão do David Lurie usada com os jornalistas depois de um caso com a ninfeta-aluna Melanie Isaacs, em Desonra: enriquecedora. Acrescento mais: superior, divina. Sim, a experiência é superior, o prazer enleva, manda você para as nuvens. Aquele assim: você leva o garfo à boca e diz hummm!

Cortam em nove, você escolhe três sabores, se quiser. O tamanho menor, a delicadeza, contribuem para a festa dos sentidos. A redonda é de massa fina no centro e bordas altas. Não só isso. A massa tem um quê de diferente, a borda você come, nem precisa estar recheada, jogue um azeitinho (eles têm aos montes, grego, português, chileno, italiano, espanhol).

Existe um negócio chamado pH da água, ou, potencial hidrogeniônico, mede o grau de acidez, neutralidade ou alcalinidade da água. Explico. O proprietário (e família), de origem italiana, trabalha no ramo de alimentos há décadas, em Sampa. Dizem que aprendeu a equilibrar o pH da água usada na massa, com reflexos na fermentação e no sabor. Portanto, amiguinho, duvido que você encontre uma pizza sequer parecida com essa que lhe indico.

Carcamano leva molho de tomates, espinafre, muçarela e essa coisa doida de gostosa chamada pinóli — uma semente extraída do pinheiro-manso, árvore originária da região do Mediterrâneo (lembra amêndoa; caríssimo, se você encontrar). Peço para trocar a muçarela por catupiry (o verdadeiro, não esses falsos que mais parecem purê), eles sempre trocam. Não há bacon. A combinação é perfeita, suave. O elemento subjetividade, OK, talvez você possa não gostar, direito seu. Para mim, a melhor pizza que já comi em toda a minha vida.

Muçarela, catupiry, queijo de mofo azul dinamarquês e parmesão, os queijos da 4 queijos; um desbunde. A portuguesa (tradicionalíssima) leva molho de tomates, presunto, ovos, cebolas e azeitonas pretas (eles têm a opção com muçarela ou sem); desbunde total.

Há também as deles. A provençal, por exemplo: molho de tomates, abobrinha e berinjela grelhadas como alho, muçarela salpicada de tomilho fresco e coberta com tomate confit. A rainha marguerita: generosa camada de molho de tomates italianos, coberta com espaçados pedaços de muçarela de búfula e manjericão cru. A Salmone: molho de tomates, muçarela, salmão defumado e raspas de queijo de cabra holandês curado, e muitas, mas muitas outras.

Você pode estar pensando, afinal, onde fica esse suprassumo dos deuses? Por partes: 1. Que fique bem claro uma coisa: não é jabá. Nem conheço os proprietários, aliás, eles nem precisam disso; 2. Simples: escrevo porque o prazer é tão grande, mas tão grande, que dá vontade de dizer pra meio mundo que a felicidade é possível e você encontra ali, bem pertinho do mar (sempre indico aos amigos, provas vivas de que a indicação é desinteressada, honesta).

Mesmo porque, crônica, por mais sabor que tenha, não encanta os sentidos (todos) dessa forma, não propõe experiências elevadas by David Lurie (às vezes até que sim), não vai satisfazer o seu desejo. Tem que ir lá.

Sempre que estou em Ubatuba, a visita é obrigatória.

Viagem de muitas voltas.

P.S.: 1. Pizzaria São Paulo, Praça da Paz de Iperoig, 26, Centro Histórico, Ubatuba-SP. 2. Tenho amigos paulistanos que degustaram pizzas maravilhosas em Sampa, nas melhores pizzarias que você possa imaginar, e se encantaram com essas pizzas no litoral. 3. Sei que você está longe, amigo caruaruense, sorry, mas, se estiver por perto, não deixe de conhecer. Me conte depois a experiência, ok?




* Cronista.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Índice


Literário: Um blog que pensa


(Espaço dedicado ao Jornalismo Literário e à Literatura)


LINHA DO TEMPO: Onze anos, onze meses e um dia de existência.


Leia nesta edição:


Editorial – É preciso estímulo.

Coluna Á flor da peleEvelyne Furtado, poema, “Ilha.

Coluna Observações e reminiscênciasJosé Calvino de Andrade Lima, crônica, “Liberdade de expressão”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire, artigo, “Afinidades”.

Coluna Porta AbertaWellen Barros, artigo,A divindade na música de Verdi”.

Coluna Porta Aberta – Wesley Peres, poema, “Quase espuma”.


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CITAÇÃO DO DIA:

Formação do homem 

São precisos 60 anos para fazer um homem e em seguida só lhe resta morrer.

(André Malraux).



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Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Editorial - É preciso estímulo


É preciso estímulo


O brasileiro precisa adquirir gosto pela leitura, para não ficar atrás do resto do mundo no que diz respeito a conhecimentos básicos, elementares, primários (primaríssimos até). É inconcebível que num país como o nosso, com a riqueza cultural que tem e com um povo tão criativo, a média anual de leitores, por habitante, gire em torno de dois. Isso mesmo, cada cidadão deste país – que produziu um Machado de Assis, um Carlos Drummond de Andrade, um Mário Quintana e tantos outros gênios das letras – lê míseros dois livros por ano. Claro que nem todos o fazem e nem nessa quantidade. Enquanto muitos leem quarenta, cinquenta, cem livros ou mais, outros jamais abriram um único exemplar em toda a sua vida. E as coisas, nesse aspecto, até que melhoraram bastante. Foram piores, muito piores, catastróficas até, há apenas cinco anos ou menos.

Há que se estimular a leitura mediante campanhas bem feitas, contínuas, permanentes, bancadas gratuitamente por todos os meios de comunicação. É questão de sobrevivência cultural delas e do país. Outra coisa que pode e deve ser feita é a expansão das bibliotecas públicas Brasil afora. Como? De qualquer maneira. Não importa se com pequeno ou gigantesco acervo de livros. Não importa se em prédios imensos ou em quartinhos acanhados. Antes de tudo, as bibliotecas devem existir. Precisam existir. É questão de estratégia nacional de desenvolvimento. Ou, pelo menos, deveria ser.

O Ministério da Cultura deveria colocar como meta da mais absoluta prioridade a instalação de bibliotecas nos mais de seis mil municípios do país. Em todos eles, não importa seu número de habitantes. Seus mentores – o ministro, os secretários, os funcionários etc. – têm que se conscientizar que não se trata de nenhum luxo, como muito bobo alegre pode pensar (há sempre algum idiota que quer ser mais realista do que o rei e que acaba trocando os pés pelas mãos), e muito menos de desperdício de dinheiro. Sequer tem que ser considerado como acréscimo de despesa no orçamento da pasta, como patrulheiros descerebrados podem alardear. Nem mesmo é um gasto. Trata-se, isso sim, de investimento! E dos mais rentáveis, com retorno garantido, mesmo que a longo prazo. É uma semeadura com fartíssima colheita potencial.

O brasileiro precisa ler. Ler muito. Ler tudo o que lhe caia em mãos. Ler desde cartazes publicitários a romances que sejam best-sellers mundiais. Ler de bulas de remédio a livros de filosofia. Não importa, pelo menos num primeiro momento, o teor da sua leitura. Há que se formar, primeiro e antes de tudo, o hábito de ler. Depois de formado o leitor, aí sim entra a questão da qualidade. É quando se pode pensar em seletividade.

O brasileiro parece ter “alergia” a livros. Demonstra profunda aversão à leitura. Mesmo na internet, onde navega com relativa familiaridade, sempre que se depara com algum texto um pouquinho mais extenso, ou um tantinho mais complexo, dá meia volta, aciona o mouse e passa para outro site (ou blog). Aqui e no Literário ocorre isso. Alguns reclamam quando programo determinada crônica mais comprida, ou conto maior ou até algum ensaio que consideram “massudo”. Todavia, este é um espaço de leitura! O que deveriam exigir, portanto, do Editor, seria textos muito mais caudalosos e, sobretudo, profundos do que ele seleciona. Esta é a mínima das lógicas. Mas não prevalece. Imaginem, então, o que ocorre em outros espaços não voltados à literatura! É um besteirol só!

Argumenta-se, amiúde, que um fator que desencoraja a leitura é os livros serem tão caros. Isto é verdadeiro, mas somente em parte. Há editoras que fazem promoções editando obras básicas, de leitura obrigatória, a custos baixíssimos e, mesmo assim... Edições e mais edições encalham nas prateleiras das livrarias, não cobrindo sequer o que foi gasto na produção. Essa questão de “preço”, portanto, é uma boa desculpa para quem não gosta e não quer ler. Os mesmos que se queixam que os livros são caros (e não raro são mesmo), não se importam em comprar CDs de péssima qualidade, ou outras bugigangas inúteis e caríssimas que estejam na moda, mas que não lhes trazem o mínimo proveito em termos de acréscimo de conhecimentos. Claro que os livros poderiam e deveriam ser mais baratos, se possível subsidiados pelo governo e ter custo ínfimo. É questão de vontade política que, entretanto... não existe!

A indiferença dos brasileiros pelos livros tem raízes mais profundas. Estão, entre outros motivos, no pouco caso com que as camadas mais pobres e humildes da população sempre foram tratadas. Os líderes do país, que em palanque sempre dizem que sua prioridade absoluta é a educação, depois de eleitos a negligenciam, embora sem mudar o discurso. Vejam só, a escola primária, ou seja, o reles ensino fundamental, o mínimo que se pode oferecer a um povo com aspirações de progresso e de grandeza, só se tornou universal no Brasil na década de 90!!!. Pode isso?!!!

Campanhas contínuas e permanentes para incentivar a leitura deveriam ser bancadas, até como estratégia básica de marketing, pela indústria editorial, não importando se as empresas sejam nacionais ou internacionais. Queiram ou não, o fato é que o mercado de livros brasileiro tem o maior potencial de crescimento no mundo ocidental. Se conseguirem dobrar a média anual de volumes lidos, passando de dois para quatro (o que ainda é muito pouco, mas, claro, melhor do que o índice atual), as editoras não apenas recuperarão o capital investido nas campanhas de incentivo, como terão lucros extraordinários.

É certo que a leitura é hábito difícil de formar. Daí a necessidade das providências serem tomadas sem mais delongas, já, hoje mesmo, para não perder, também, a nova geração que está sendo recém-alfabetizada. Para vocês terem uma ideia, basta informar que os brasileiros compraram menos livros em 2004 – 289 milhões, incluindo livros didáticos distribuídos pelo governo – do que em 1991. Não tenho cifras mais recentes, mas as coisas não melhoraram muito.

Sejamos, nós escritores, para o nosso próprio bem, os grandes semeadores desse artigo de primeiríssima necessidade num país que quer ser considerado como “civilizado”. Se o formos, as gerações futuras poderão dizer de nós, como é dito no estribilho do poema “O livro e a América”, de Castro Alves:

Ó bendito o que semeia
livros, livros à mancheia
e manda o povo pensar.
E o livro caindo n’alma
é germe que faz a palma
é chuva que faz o mar!!!”.


Boa leitura!

O Editor.


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Ilha - Evelyne Furtado


Ilha

* Por Evelyne Furtado

Na adversidade
o solo macio
nos acolheu.

Em meio à bruma
o farol do desejo
nos acendeu.

Em marcha implacável
noites insones, o tempo
nos ofereceu.

Na realidade
o banzo é uma ilha
do amor seu.



* Poetisa, cronista e psicóloga de Natal/RN.