quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Ser mãe é padecer no paraíso” (Coelho Neto)

* Por Mara Narciso
 
Há mulheres que, antes do casamento (ou não), optam pela laqueadura das trompas, para nunca engravidar. A sociedade é dura com elas, dizendo-as egoístas, que a maternidade é a realização da mulher, e que vão se arrepender. Há quase um apedrejamento público. A exigência social de ter filhos faz com que mulheres inférteis sintam-se incompletas, secas por dentro, por não terem gerado um rebento. Outras mulheres buscam em seu íntimo um motivo para ter uma descendência e não o encontram. Sentem-se preenchidas por outras atividades que não sejam criar filho. Suas vidas são preenchidas por marido e trabalho, ou sem marido e trabalho, ou ainda com a fé e o celibato da vida religiosa. Existem freiras que passam suas vidas em contemplação, adorando a Deus, dentro da clausura, e o trabalho é para a manutenção pessoal da comunidade. A plenitude vem da fé. Outras religiosas ganham o mundo indo a lugares pobres e em conflito, convivendo com a fome e a violência para levar amor aos miseráveis globais. Completam-se, abrindo mão das suas vidas pessoais, do nome, da família e até do seu país. Num universo oposto, as prostitutas sobrevivem do seu trabalho, enquanto podem. Algumas são mães, outras preferem não sê-lo.
 
Há mulheres apaixonadas que se casam, trabalham, são felizes no amor e na profissão, se cobrem de dúvidas e depois têm a certeza de que não querem procriar. Além das convictas, algumas delas vivenciam a gangorra do querer e do não querer, num sobe e desce de aflições, por isso preferem não tomar medidas definitivas. Evitam filhos com anticoncepcionais hormonais ou Dispositivos Intra Uterinos, ou métodos de barreira, mas deixam uma janela aberta, que algumas vezes pensam estar fechada. As cobranças as levam a longos conflitos, até ultrapassar os 40 anos. O medo do desconhecido ameaça suas vidas, tornando-as insatisfeitas consigo próprias. Então, deixam-se engravidar, por decisão pensada, no susto ou por acidente. Solteiras maduras também podem passar por esse processo. Num caso e noutro, podem recorrer ao aborto. Há estimadas 900 mil interrupções da gravidez por ano e a maior parte escapa das estatísticas. A criminalização do aborto, até aqui, não tem interferido nos números, que costumam se mover para cima, acompanhando o crescimento da população. Mesmo que os deputados obriguem as mulheres a parir filhos dos seus estupradores, os abortos, indiferentes às leis, devem continuar.
 
Quando a grávida rejeita o “estado interessante”, mesmo decidindo continuar, a pressão a sua volta a esmaga. Sente-se mal pelo enjoo, dúvidas e cobranças. Parece banal, já que neste momento há tantas grávidas, mas é dramático para quem vive isso. Muitas mulheres gastaram suas juventudes com múltiplas gravidezes, gerando dez, doze, dezesseis filhos. Ter uma pessoa dentro da barriga é aterrador. Eu sou eu, e tem mais alguém dentro de mim. Há alguém me parasitando. Com essas ideias é possível perder o juízo, mas persiste a ideia de que gravidez não é doença. Algumas buscam recurso na psiquiatria, nos remédios e na psicoterapia, para vencer os nove meses, quase um ano. No ventre da outra, passa rápido, mas na própria barriga é uma eternidade. E nem se pensa em vaidade, flacidez, estrias, nem na dor do parto ou na recuperação da cesariana. Imaginar o médico vir com um bisturi e cortar a barriga de fora a fora dá agonia, mas a questão maior é enfrentar o estranho que vai chegar. Quem está nessa situação piora seu medo quando ouve que vai amar aquele serzinho, assim que ver a cara dele.
 
Mesmo conhecendo grávidas que tiveram depressão durante os nove meses e que, depois do nascimento, sem seguir roteiro pré-estabelecido falaram: “estou bem! Quando nasce um filho, nasce uma mãe”, é covardia apelar para o senso comum. Para tranquilizar uma gestante apavorada, pode-se dizer que, com o tempo a paz vai chegar. Não é obrigatório aceitar o ser em formação. Não se sinta culpada por não amar esse feto. O enjoo e a deformação do corpo, já são ruins o bastante. Melhor não se torturar, por estar infeliz. Dê a si mesma a chance de sentir o que tiver de sentir, sem repetir clichês nem obrigações. E se, quando nascer, não ficar apaixonada, como todos dizem que ficará, não se atormente. Ninguém sente coisa alguma por decreto. O mais natural é amar o filho, algumas loucamente, desde o resultado do exame, ou então, quando olham para o neném ou o pegam para levá-lo ao seio, porém, esse reflexo ancestral pode falhar. Poucas se atrevem a mencionar isso. A rejeição existe, não é rara, e explica as mães indiferentes. Ninguém suporta não ser amado pela própria mãe, mas há mulheres que não nasceram para a maternidade.


* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”


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