sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

A subversiva que veio de Fortaleza


* Por Urariano Mota



Selene brilha como uma luz única. Ela é toda uma pessoa só repleta de atração. Numa sociedade machista, dir-se-ia que ela nem precisava falar. A sua existência mulher seria condição suficiente de eloquência. Mas enganado seria quem a visse ao modo de musa dos anos de mil e quinhentos. Em 1970, com a sua face mal iluminada pela luz frágil do bar, Selene é de outro gênero de beleza.


Ela é a própria União Brasileira de Estudantes Secundaristas em forma de gente. Isso quer dizer gestos, gostos, afeto, ideias e coração se organizam na luz da sua face. Mas o que é a descrição física do seu rosto? Selene parece loura, olhos castanhos claros, cabelos repartidos. Talvez os amarre atrás com liga de borracha ou cordão, como seria mais próprio a uma proletária. Mas na ocasião, isso não notávamos, nem sequer ousaríamos observar. Há um olhar masculino que atenta o conjunto, no que resulta a soma, nunca o pormenor. Os nossos olhos iam da sua face às coxas, sem paradas ou mediações. Selena possuía seios? Com absoluta certeza, devia tê-los firmes, suculentos de manga no estio. Mas não os percebíamos, nem mesmo sob a blusa. Isso queria dizer, penso agora, que ela não exibia decote. As militantes às vezes tinham um ar de evangélicas, na idealização da luta de soldadas de Mao Tsé-Tung. Então descíamos do rosto para as suas coxas, que nisso era vencedora a fêmea sobre a disciplina. Não lembramos se ela possuía pernas, mãos. Devia tê-las porque gesticulava, fazia acentos da fala com os braços e mãos, que eram delicadas, entrevistas. E as unhas, estariam sem cuidado, como convinham a uma proletária? Não sei. Descíamos do rosto até as coxas. E o pescoço, suave, existia? Sim, mas quem sabe, quem o via? Descíamos do rosto para as suas coxas. Imagino, com um esforço de composição harmônica, em seu rosto se assentava um breve nariz, de barro ou de foca, talvez, mas pequenininho. Assim o recomponho porque o seu nariz nasceu para o conjunto do corpo, que era todo pequenininho. Existem narizes grandes para corpos pequenos. Desde as bruxas infantis sabemos existirem narizes disformes para rostos velhos. Mas esse não era o rosto de Selene. Na verdade, o rosto era o preâmbulo, uma introdução a suas coxas. E a fixação nelas não era só do olho desejoso, tara de jovens solteiros à sua volta no Bar 13 de Maio.

Nós as vemos porque são inevitáveis. Imaginem um avião que caia na sua frente agora. Ou um disco voador que desabe no seu caminho. Assim eram as coxas de Selene: avião, disco voador, estrela a riscar até o chão da terra. Isso não é tentativa de fazer poesia. As coxas de Selene cresciam sobre nós por três elementares razões: ela usava saias curtíssimas; as coxas eram róseas de tão expostas ao sol do Recife; e logo abaixo, nas pernas havia um rendilhado de chagas. Como não vê-las, como evitá-las, ainda que no limite de um pudor cristão? Todas essas coxas, digo, razões, se expressavam na história de como Selene as ganhara na forma de cicatrizes. Elas eram marcas de ácido sulfúrico jogado pela direita na batalha, no confronto estudantil da Mackenzie, em São Paulo. A batalha da Maria Antonia em 1968. Uma marca, umas pernas que ela própria apontava ao contar a briga feia em São Paulo. Apontava-as com uma verve de narradora e graça de bailarina, quando enfatizava a própria esperteza: a minissaia era para desviar os olhos das feridas abaixo das coxas. Uma graça, na sua narração, que matava dois coelhos com uma só vista. Selene contava a sua bravura e se dava aos olhos virgens dos meninos. Liderança inconteste, nós a adorávamos…

No começo de 1970, Selene possuía apenas 18 anos de idade, e com tão pouco tempo de vida, discorria sobre a política nacional e clássicos do marxismo. Como ela conseguia ser tão precoce? Como ser tão convincente até mesmo para militantes mais velhos como eu? Sim, um experiente velho de 20 anos então. Sinto, por um lado, que tudo naquela história era precoce. As tarefas, as promessas eram bem maiores que os nossos ombros. Não queríamos nada: apenas, sem armas, queríamos derrotar as forças armadas no Brasil. E os soldados éramos uma fração menor dos jovens brasileiros. Apenas. Daí que, em tamanho descompasso, amadurecíamos com o pouco tempo de vida e experiência. Estávamos destinados ao amadurecimento “a carbureto”, e todos por força da ditadura, que nos estremecia com seu impacto. Mas no caso de Selene, além do geral, atuava uma força, um fogo de paixão, que unificava todo entendimento. Com ela, não tínhamos pausa para reflexão, nem, confesso, tínhamos a mais remota vontade. Eis por quê.

Escrevi “eis por quê” e fiquei imobilizado por mais de uma hora. É que se cruzam luzes de contradição nesta página. Mas devemos analisar o branco como uma decomposição do feixe luminoso do prisma. Isto é, de um modo menos geral, acontecia entre nós um fenômeno que julgávamos ser exclusivo dos religiosos, da manifestação dos simplórios camponeses a seguir seus beatos. Aquela história dos fanáticos discípulos de Antônio Conselheiro, que desprezávamos como sendo de gente atrasada de uma atrasada e bárbara terra. A saber, também acreditávamos no sonho do futuro com os olhos encandeados. Assim como os conselheiristas éramos tomados por uma febre nas ações, nos encontros, nas palavras. Tanto lá, nos confins de Canudos, como aqui, nos limites civilizados do Recife, íamos transformar em ações rápidas o sonho, no curso máximo da nossa juventude. Tanto lá, como cá, iríamos subverter o mundo. A diferença é que no Conselheiro o futuro não tinha nada parecido ou aparecido na Terra. E para nós, o futuro já era presente desde os bolcheviques, atualizados por Mao e pela ofensiva TET da saga do vietcongue. Levávamos, digamos, essa franca vantagem nos sonhos nossos. Tínhamos exemplos concretos, intensos, de outras lutas e terras. Se eram lá, seriam aqui. “Claro, sem dúvida”, dizíamo-nos sem qualquer mediação, e um encanto religioso também nos envolvia. Essas eram as primeiras cores básicas do raio de luz que atravessava o prisma. Mas havia outras cores e tons mais próximos de Selene em sua fala e nós.

Dentro da luz Selene era um feitiço particular para os olhos, ouvidos e coração. O curioso é que ela não era dotada de uma beleza revelável em fotos 3 x 4. Pelo contrário, deveria parecer mais uma jovenzinha sardenta, quase diria se ela tivesse sardas. Sardenta, poderia ser, se o seu rosto ajudasse. Outras características físicas, recordáveis também não lhe cabem. Há pouco, perguntei aos amigos: “qual a cor dos olhos de Selene?”. Ninguém sabia ao certo, os mais apaixonados disseram que deviam ser claros. Estavam enganados, observo, traídos pela cor da pele e dos cabelos claros. Um amigo que com ela esteve mais tempo me respondeu que a sua cabeleira devia ser castanho clara. Por aí se nota o perfil inseguro, quando se detém na descrição física, sem movimento. Isso. O seu encanto era o que se movia. Além, afora e fora da incapacidade em fixar os olhos nas roupas, nos sapatos, na maquiagem, afora isso, ela era rosto e coxas. Como não sou um estilista, sei apenas que ela estava vestida. Havia qualquer coisa de verde na minissaia, lembro. É claro que eu poderia, com pesquisa, retomar o que ela poderia ter vestido em 1970, em sua classe e condição de clandestina. Mas seria tão falso. Seria o mesmo que colar vestido em boneca, um duplo artificialismo. Então eu digo, como uma primeira aproximação, que Selene era rosto e coxas. E mesmo aí, há um pudor, uma vergonha para o maior escândalo.

Quero dizer para ser mais próximo da verdade: Selene era as coxas. O diabo leve o remorso para o que um militante daqueles anos diria, ou ela própria: “mas que reducionismo, companheiro! Quanta indignidade”. Não, a verdade é que é ofuscante e despudorada. Não há por que desejar o fenômeno como um filé, quando ele é cru e total. Isto é, Selene era suas coxas porque nelas estava, por um lado, impressa a sua luta, um pouco mais abaixo nas feridas conquistadas na Batalha da Maria Antônia. As feridas eram a sua mão perdida da Batalha de Lepanto. Por outro lado, elas refletiam o novo mundo com jovens mulheres na luta clandestina. As coxas se destacavam pelo proibido que sentíamos, no tabu de ver a fêmea num quadro de direção. “Quanta indisciplina. Mas que espírito de porco vulgar, pequeno-burguês, covarde” seria o mínimo que ouviríamos. Mas todos amávamos aquelas coxas para nossa eterna condenação. Em alguns, talvez mais do que em mim, aquelas coxas foram uma danação. Já estávamos condenados, não é? Que infernal contradição. Caminhar para a liberdade não é o mesmo que estar liberto.

Podíamos morrer sob tortura a qualquer instante. No entanto, seria clara possibilidade não nos abrir um campo de libertinagem, que confundíamos com a visão das belas coxas da dirigente. Estas nós não víamos. Quero dizer, sobre ela jamais comentamos, que nosso senso de loucura não chegava a tanto. Víamos as belas pernas da companheira Selene e passávamos para as tarefas mais altas, sem ironia ou cinismo, digo, altos para longe de nós. Selene fumava. E punha os desavisados nos eixos.
- Eu sou subversiva! Podem dizer.

Célio a advertia: 
- Cuidado com o que fala.
- Eu sei, é a força da argumentação – ela responde. – Mas a gente pode falar um pouco mais baixo... O companheiro pede a conta?

O companheiro sou eu. Pagamos, nesse plural de modéstia, e saímos para o Parque 13 de Maio. Rodamos a conversar. Entre árvores e namorados, ela pode ficar mais à vontade.
- E o trabalho aqui, como vai? Não, não falemos em dificuldade. A luta é difícil em toda parte. É preciso chamar os setores progressistas. Organizá-los.

Não são só palavras. A sua fala não é só verbo. Ela é o testemunho vivo da luta na clandestinidade. É a pessoa mais eloquente ali. Aquilo que verei em anos mais maduros, quando me espantar ante a grandeza dos feitos em contra
ste com a maior discrição e modéstia, em Selene, naqueles anos fogosos, ainda não podia ser vista. Gregório Bezerra pouco falava na sua volta pela anistia, me digo. Mas Gregório não era um homem de falas. Era uma rocha de convicções, da mesma natureza de um líder vietcongue. Os seus miolos podiam estourar e ele mudo, no silêncio de palavras apenas. Ou de Patrice Lumumba, cuspindo o papel de jornal que enfiavam na sua boca. Mas ser eloquente também podia ser prova de paixão na luta. Apenas fala quem é de natureza falante, sem que isso diminua o valor do militante. A desproporção em Selene é outra. No Parque 13 de Maio ela vai à nossa frente, baixinha, magra, de minissaia. E nós, marmanjões de 19 ou 20 anos a segui-la como operários que defendem a sua rainha. Melhor, bebendo sem comer a sua primeira musa da guerra clandestina. Quando ela fala, melhor, quando ela quase grita na noite:
- Eu sou subversiva! Eu quero virar este mundo de cabeça para baixo.

Quando ela fala assim, pelo eco em nossa consciência, mais que fala palavras. Fala imagens do que carregamos em nós mesmos, e não falamos tão eloquente. O que você quiser de nós, fale, mulher. Fale, jovem que não é mais criança. O que deseja deste servo da causa? Com Selene vi pela vez primeira uma manifestação que veria depois em shows de artistas fundamentais da música popular brasileira. Foi como, na antecipação do Parque 13 de Maio, ver Luiz Gonzaga na praia de Boa Viagem. Se me faço entender, era de prender a respiração. Era a possibilidade que residia em nós projetada. Mas nada havia de mistura do feitiço que nos atiçava para a posse, que não tínhamos, porque grande e insuperável era o muro da disciplina partidária. Numa palavra. Ela, como sexo, era o socialismo. Então ela me fala sob a luz fantasmagórica da luminária do parque:
- O companheiro Célio não tem onde dormir.
- Sei – respondo. E olho para todos, que são Célio, Selene e Luiz do Carmo. Mas todos olham para mim. Eu sou a salvação escolhida. E gaguejo, numa pretensão de resposta:
- Olha, no meu quarto só tem uma cama. – Silêncio nos olhos fitos em mim. E continuo: - É um calor infernal. A gente sua em bicas.

Ela me responde:
- É bem melhor que dormir na rua. O companheiro está clandestino e pode ser preso.
- Sei. Mas como ele pode dormir? Só pago uma vaga.

Eu ainda não havia aprendido que no movimento clandestino as dificuldades se contornavam. Que haveria sempre um drible esperto. E que as dificuldades legais – o “moralismo burguês” – tinham que ser superadas pela esperteza. Aliás, esperteza, nada, apenas uma ação necessária para a ética da revolução. Roubo, furto, nada disso existia. Expropriação era o nome. E se fosse o furto para um indivíduo? Ainda assim, porque os indivíduos da revolução já estavam desculpados pelo uso irrecorrível de uma ferramenta para a vida clandestina: livros, carro, carteira de identidade, roupas, alimentos, todas as coisas de terceiros estavam sob a mira da sobrevivência do militante. E eu vinha falar que só uma pessoa podia dormir na sauna, porque eu pagava só uma vaga.
- Companheiro... – e a precoce revolucionária me fala didática, do alto da sua experiência provada. – Companheiro, ele sobe com você mais tarde, sem barulho. E qualquer coisa que acontecer é um amigo de visita. Antes que a dona da pensão acorde, ele já estará fora da pensão. Certo?
- Certo – mal falo. A clandestinidade tinha suas leis, todas fora da lei. Eu aprenderia.

*Trecho do romance “A mais longa duração da juventude”


* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros



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