domingo, 7 de janeiro de 2018

A carneação


* Por Alcides Maya



Iam carnear. A rês, vaquilhona osca de uns dois anos, boa de carnes, comprada ao Bento, já estava presa pelas aspas; escolheram o Jango para matá-la; porém os cinchadores não conseguiam esticar convenientemente os laços e a cena, complicada pelos acidentes do terreno, ia além da expectativa, impacientando a todos, gulosos de carne fresca a chiar ao fogo.
Embolada, a cabeça gacha, de um lado, a língua pêndula, a babar-se em longos fios prateados, ela berrava escornando desajeitadamente o ar. Jango Sousa, que a rodeava, de mangas arregaçadas e de faca em punho, a bainha de couro preto tenteado a bater contra o tirador de vaqueta, reluzente ao sol a folha bem afiada, tinha no rosto, não obstante o hábito, um ligeiro rictus desmentindo-lhe a fleugma. E não se ajeitava, adiantando-se, retrocedendo, passando por debaixo das tranças do couro, indo a ferir e fugindo, à espera de momento oportuno para bem golpear. A uma ordem sua, um dos laçadores passou a trama ao tronco de uma árvore; o outro paleteou o cavalo: as duas cordas vibraram, tensas, no espaço, e a novilha parou, firmando as patas na grama revolta. Decorreu um instante de suprema imobilidade e apenas leves frêmitos percorriam os laços, animando-os de ondulações serpentinas. Queda, a terneira deu azo a que se lhe conchegasse o gaúcho, desgarronando-a, seguro à ponta da cola. Um dos cavalos, arisco, desviando-se, suxou o laço e a osca, apoiada na perna sã, de pelo desenrugado sobre a giba, à arqueadura da espinha, atirou uma violenta marrada, e só depois do cavaleiro dominar a besta foi possível a sangria. Mas, se o homem medira com certeza o jarrete, errou no golpe ao pescoço: ferida, a vaca ainda se manteve em pé, balouçando os cornos entre os laços remitidos e tentando escoucear com a perna retalhada, cujos músculos vãmente retesava; e só ao tirão seco de um dos ginetes abateu, escabujando, um jorro de sangue borbulhante. Devia-se renovar o corte; preparava-se já para fazê-lo Jango Sousa; porém Miguelito, que despira, num ápice, o casaco, achegou-se com surpresa de todos, pois não o conheciam, curvou-se sobre o corpo estertorante e, friamente, suavemente, afundou-lhe o facão no sangradouro, torcendo-o para tassalhar o músculo cardíaco. Era decisivo, esse: à dor, convulsou-se a vítima num sobressalto de morte, encolhendo-se toda, com um mugido soluçado, num respiro ortopneico de ar. As bordas sangrentas do talho, unindo-se, apertaram a lâmina cravada, cujo cabo repuxou a mão trigueira que o premava com os dedos recurvos, como grampos. Arrancada a folha enrijecida, gotejante, saiu ringindo nas cartilagens espedaçadas, de onde, mais grosso, aos coágulos, golfejou um resto de cruor. Limpou-a Miguelito passando-a algumas vezes no couro arrepiado: luzia-lhe cerrada, por entre os lábios entreabertos, a dentadura forte, muito alva; e saíra-lhe à cara o gozo íntimo, inconscientemente feroz, algo de sensualidade profunda, ancestral e sinistra. A novilha, entretanto, agonizava, extinta a consciência num último impulso baldado de fuga espavorida. Sacudiu-a o derradeiro arquejo; inteiriçou-se, rígida; a língua, de lixa, esbranquiçada, caiu mais, para fora, endureceu de um lado e os olhos foram-se embaciando aos poucos, refletindo na retina, como em uma guache minúscula, o espetáculo da planície com os salsos próximos e a figurilha do matador, inclinado, o braço estendido, a suster a arma, em que os raios de luz morrediça do ocaso deixavam agora, vez por outra, postremos revérberos. Um cachorro lambia docemente, às costelas, o sangue colado à pele, e, sobre a sangueira que empapava as ervas, o leitão de um dos carreteiros fuçava cheio de voracidade, coinchando. Foi além, avizinhou-se, introduziu o focinho, de cerdas úmidas de grúmulos rubros, na golpada hiante, bafejando-a, arreganhando-a, remorado a princípio, numa garícia de gula mansa, depois rapidamente, a grunhir, sôfrego, às cabeçadas. Espantaram-no para tirarem o couro. Os tecidos, quentes, riscados, fundo, pelas facas, estremeciam ainda, meio vivos; fêveras crispavam-se; havia repuxamentos demorados de músculos, remexer, contrações de nervos...
Uma irradiação postreira incendiava de todo cabo, no poente, as nuvens amontoadas; era mais terreno, atmosfera acima, atmosfera abaixo, o girar dos corvos contornando a carretama; adensava-se, da parte do arroio, o muro de sombra das árvores, de ramaria fundida na mesma soturna massa, impenetrável ao esguardo; e, à aproximação da treva, subia de ponto no acampamento o resfôlego de prazer da gente solta. Na praça formada pelos carros, acendera-se uma fogueira; negros, caboclos, homens brancos apertavam-se ao redor, atraídos pelos assados; manuseavam-se espetos; o bucho da rês, arrojado aos cães, exalava um cheiro acre de ervas esmoídas; e continuamente ressoava, entre risos, o lique-lique seco, áspero e frio das lâminas das facas passadas com rapidez nas chairas de aço.
[...]
(Ruínas vivas, capítulo VI, 1910)


* Jornalista, político, contista, romancista e ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras.


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