domingo, 10 de dezembro de 2017

O charme discreto da ebriedade*


** Por Pablo Uchoa


De Londres


Betty Boop, quem diria, retoca a maquiagem e me sorri com seus lábios de batom vermelho-gritante. Recém-saída de um anúncio de Coca-Cola, cabelos curtos e negros emoldurando o rosto branco e de pintinhas, bochechas que ela contorce enquanto se olha no microespelho que tirou da microbolsa.

- Driver, driver! Agora dobre à esquerda, por favor. Pode parar aqui.

Mas quando saltamos do táxi, nada lembra os anos cinquenta – ou então os anos dourados ganharam ares de psicodelia. À nossa frente, um enorme galpão quase treme a corpulentas batidas de uma música eletrônica.

Bum-bum-bum, bum-bum-bum-bum.

Norte de Londres, quase duas da manhã. A essa hora, na terra da rainha, ou se dorme com os anjos ou se abraça o diabo de vez.

- Yeah! – comemora Betty Boop.

A velha Inglaterra, terra de loiras que saem por aí desfilando seus copos de cerveja como quem gasta tempo diante de uma vitrine. Ou “desfilando” talvez dê a impressão de que a cerveja é só enfeite. Que nada. Na manhã seguinte vou à piscina da academia e lá estão elas, moribundas, deliciosamente esparramadas sobre as poltronas, recuperando as mechinhas da farra da véspera. Exibindo o look ressaca, mas quem se importa? Acho até charmoso. Passo ao lado e jogo uma piscadela:

- Gostosa!

Mentira, este tipo de cantada aqui não funciona. A abordagem-padrão já resume o espírito da coisa por estas bandas:

- Posso te pagar um drinque?

- Riririri... – sorri-me Sylvia, morena tipo mignon, olhos verdes. Prefere uma caipirinha, já esteve no Brasil. Trabalha com alguma profissão no terceiro setor? Ou algo que o valha. Aquele irlandês já me havia cantado a bola, nesta terra a conversa preliminar não tem a menor importância. Faço uma aposta, com meia dúzia de cervejas na cabeça amanhã você nem vai lembrar o nome dela, quer ver?, ele desafiou.

Imagine, que descortesia, desconversei.

Mas ele insistiu: veremos, novato. E me apontou as mesas cobertas de cerveja Guinness, das quais eu destoava com a minha do tipo lager. Na outra ponta do balcão, um senhor barbado mantinha os olhos fixos no noticiário e resmungava: “Ingleses estúpidos. Ingleses estúpidos”.

“Bem-vindo ao pub irlandês mais amigável da região”, lia-se numa placa à minha frente.

“Riririri”, Sylvia sorri, e faz de lá sua carinha de Minnie Mouse. “Y como te parece Londres?”, ela me pergunta em espanhol.“Linda, linda”, respondo. Outro risinho, Minnie Mouse entra com os dois pés pelo portunhol: “gracias, también tienes una bunda muy linda”.

Foi um francês que conheci outro dia quem definiu muito bem, “Londres é um defloramento”, ele dizia com espanto. Acercou-se ao balcão com seus quase dois metros de altura e braços que dariam uma perna minha. Por pouco não ofendeu o barman ao pedir meio copo de Guinness:

“Meia cerveja?”, o rapaz estranhou. E deixou-se trair num gesto incongruente com a discrição londrina, olhando de cima a baixo o corpulento cliente. Que por sua vez segurava com mãos volumosíssimas o copo que lhe ficava minúsculo como um isqueiro.

Entendo-lhe o desconforto, pobre, e logo vindo da França, onde a cultura do vinho e da moderação, e de quebra aquela art de vivre, que os ingleses tanto invejam, combinam mais com uma meia dúzia de refinadas sacanagenzinhas sopradas ao ouvido, entre uma taça e outra de bom Borgonha.

Deste lado do canal, esta aura não inspira. “Qual o sentido de ficar bêbada e não demonstrar?”, questiona uma amiga inglesa. E enfileira dez doses de tequila no balcão:
- Quer apostar uma “corrida”? Quem virar mais tequilas ganha; o perdedor paga as doses.

Ora, minha amiga nunca ganhou-me uma disputa sequer, mas de certa maneira encanta-me que continue tentando. A mim, que sou vira-lata, soa como transgressãozinha de cadelinha poodle escapulida de casa. Comove-me a singela pôrra-louquice destas meninas. Minhas calças jeans e tênis All Star largados ao pé da cama testemunham as vezes em que recosto a cabeça no travesseiro e rio sozinho, passando em revista as lembranças misturadas aos reflexos da cidade que entram pelas persianas.

E haverá poesia na ebriedade? Não pensa assim outra francesa que numa noite sentenciou, ar blasé e sobrancelhas arqueadas:

- Esses ingleses bebem como uns ogros.

Aceitei seu enunciado, que jeito? A contragosto, no entanto. Há, sim, beleza na concentração de Minnie Mouse equilibrando-se sobre seus saltos-agulha no caminho de volta ao metrô. Traçando seu rastrinho ziguezagueante – tap, tap, tap – na calçada úmida de Londres. Mesmo certa doçura, como a de umas meninas dos olhos mais dilatadas que o normal, ébrios azuis que avivam a iluminação alaranjada dos bares.

Caetano Veloso se sentia deflorado pela “deselegância discreta” de São Paulo. Fino menino abandonado aos leitos perfeitos peitos direitos da cidade grande. Sou mais jeca que Caetano. Desde sempre me deixei levar pela beleza à minha volta. Extraterrestre, porém, procuro mimetizar-me à paisagem. Como defesa, obedeço à risca as regras locais.

Destas, a principal é deixar pela noite os momentos que lhe pertencem. E também alguns detalhes menos importantes. “Betty Boop” e “Minnie Mouse”, por exemplo – apelidos evidentemente fictícios. Os verdadeiros nomes de minhas divas inglesas, como manda a tradição londrina, esqueci-os logo na manhã seguinte.

  • Esta crônica faz parte da série “Obviedades londrinas”, que tem como pano de fundo a capital inglesa.


(**) Cronista, vive atualmente na Inglaterra, dedicando-se a pesquisas no Institute for the Studies of the Americas, da Universidade de Londres. Autor do livro-reportagem “Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez” (Ed. Globo, 2003), menção honrosa  no prêmio Vladimir Herzog 2004.


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