segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Hoje encontrei o Natal

* Por Urda Alice Klueger

(Escrito em 2008, logo após a Tragédia das Águas que assolou Santa Catarina)

Hoje encontrei o Natal. Meu cachorro me acordou antes da hora costumeira, seis e pouco no relógio, e saí com ele para dar a volta matinal. No portão aqui do nosso abrigo de flagelados passava um homem empurrando uma bicicleta e levando uma cachorrinha presa por uma corrente.

No primeiro momento, só vi a cachorrinha, amizade certa para o meu cachorro, e os dois pularam um no outro e se lamberam, e o dia começava prometendo ser bom. O homem perguntou:
- A senhora sabe qual é o caminho que se deve tomar para se chegar à BR 470?

Eu disse que ele estava certo, que era seguir sempre em frente aquela rua, que ele acabaria chegando à BR 470.
- E lá vai dar em Guaramirim, não é mesmo?

Não, não era mesmo. Para Guaramirim havia que se tomar a rodovia Guilherme Jensen, e lhe expliquei como fazer, onde entrar.
- Mas não dá para ir pela BR 470?

Para Guaramirim não dava. Prestei mais atenção no homem, um dos tantos andarilhos que circulam por nossas estradas nestes tempos estragados pelo neoliberalismo, apesar de agora já estar mais que comprovado, lá nos centros de poder, que o neoliberalismo não passava de uma falácia das piores, simples estrangulador de pobres para encher cofres já abarrotados de ricos.

O homem da manhã estava incrivelmente sujo e coberto de feridas, com dois abcessos abertos nas bochechas. Havia muita crosta e muito pus em muitos lugares, e cobrindo tudo, a grande crosta de pó que é vestida, atualmente, quando a gente se locomove pelas ruas ou estradas da minha região, depois que secaram os mares de lama oriundos do derretimento dos morros. Um executivo que saísse a andar por aí de bicicleta acabaria com a mesma crosta de pó – só não teria as feridas e os abcessos. Fiquei pensando: seria uma doença, ou seria falta de determinadas vitaminas? Talvez fossem as duas coisas; talvez fossem algumas doenças; quem garante que os abcessos nas bochechas não proviessem de terríveis dores de dentes que aquele homem sorridente com sua cachorrinha tivesse tido só e desamparado, nos escondidos de passar a noite que ele devia conhecer? Aí ele me disse:
- Mais para frente há acostamento? É que meu braço está quebrado em dois lugares, e está difícil tocar a bicicleta. Com acostamento fica mais fácil...

Só então reparei no gesso do braço esquerdo, tão coberto de pó e sujeira que a gente nem prestava atenção.

Sim, haveria acostamento mais para a frente, e fomos conversando, e os cachorros foram correndo, e eu lhe mostrava as muitas feridas nos morros, de onde a minha cidade sangrara como nunca havia sangrado antes, e as casas que já não existiam, e outras casas que haviam ficado enterradas na lama até a altura da metade das janelas...
- Quantos quilômetros o senhor faz por dia, com essa bicicleta?
- Dá para fazer uns 80...
- E a cachorrinha anda isso tudo?
- Não, ela vai aqui no engradado...

Havia um engradado de plástico amarrado no bagageiro da bicicleta, onde o homem carregava seus bens. Não olhei muito, só reparei que havia uma garrafa de dois litros quase cheia de água.

A cachorrinha tinha se animado demais, andava fazendo umas incursões para o meio da rua, e ele temeu por ela. Puxou-a pela correntinha, colocou-a no engradado, onde ela ficou, toda faceira e feliz, sem nem se importar com a interrupção das brincadeiras que fazia com meu cachorro. Ela amava profundamente aquele homem, morreria por ele. E ele me contou:
- Era uma filhotinha jogada fora. Encontrei-a perdida numa rua de Navegantes. Está com quatro meses.

Conversamos rua afora, e fui descobrindo que aquele homem entendia de todas as estradas e cidades do sul do Brasil.
- Em Barra Velha – contou-me – há uma mulher que tem doze cachorros. Todos grandes. Ela os acha na rua e leva para casa. É uma mulher de coração muito bom. Gasta mil reais por mês, só de ração.

Eu me admirava.
- Lá em Itajaí a enchente foi terrível. Eu vi como as casas de madeira ficaram imprestáveis. Mas a senhora tem certeza de que para ir a Guaramirim não tem que pegar a BR 470?

Eu tinha. Perguntei-lhe o nome. Era José Aparecido e já não lembro o sobrenome, que ele tinha um singelo orgulho de ostentar, como quem tem um último bem que não pode ser roubado por nenhum neoliberal.
- Em Guaramirim eu tenho amigos! – ele me contou, como um segredo de enorme valor, e me fez lembrar de Saint-Exupéry. Eu estava mesmo bem curiosa para saber o que ele ia fazer numa cidade pequenininha. – Já trabalhei seis meses em Guaramirim catando papel, tenho amigos lá. Os meus amigos de lá fazem festa de Natal! No ano passado teve até chope!

Pronto, estava explicado! Fiquei com um bocado de vergonha desta dor que há dentro de mim, que está me impedindo até de ouvir música de Natal, quando ela aparece sem querer.

Ele contou-me outras coisas, sobre os três carrinhos de catador que já tivera; sobre as diferenças de preços de latinhas vazias que existia em Blumenau e em Curitiba – agora só tinha a bicicleta e a cachorrinha, que ia que ia montada na garrafa de água do engradado.
- Mas a senhora tem certeza de que para Guaramirim não tem que passar pela BR 470?

Garanti-lhe de novo, dei mais indicações do caminho. Perguntei:
- Como é a festa de Natal em Guaramirim? Tem galinha assada?
- Tem de tudo, dona. Tem carne, tem maionésia, tem chope! Tem até as mulheres que trabalham lá! – ele não disse da fraternidade que deveria ter, do consolo dos braços amigos, que sabe do reencontro com alguma antiga namorada, mas tudo estava implícito na intensidade da emoção dele.

Eu deveria voltar, já fora longe demais pela empoeirada Rua das Missões, onde íamos caminhando, e via meu cachorro de língua de fora. Disse-lhe:
- Tenho que ir. Meu cachorro já está com sede.

Então, a galanteza maior de todas que ele poderia ter feito:
- Mas tem água aqui na garrafa, dona. Pode dar para o cachorro.

Sei bastante da vida dos andarilhos deste mundo para saber que não conseguem água com facilidade, que muitas vezes são apedrejados quando se aproximam de alguma casa para pedir água, pois as famílias pensam que eles vêm para lhes roubar as crianças. Aquele homem de abcessos nas bochechas e esmagado pelo poder do Capital dividia sua última riqueza sem nem pensar. Então me senti pequena e mesquinha diante da grandeza dele, e fiquei com vontade de chorar. Antes que o fizesse, despedi-me, e ele me apertou a mão sem nenhum constrangimento pelas feridas supuradas, com a galhardia de um rei.
- Boa viagem para o senhor! Não esqueça de virar à direita onde lhe ensinei!
- Feliz Natal, dona! É uma pena que a conversa já está acabando tão cedo! É muito bom viajar quando a gente pode ir conversando!

Em Guaramirim, vai haver um grande Natal! É uma notícia muito boa. Será que aquele homem não era um dos reis magos e não estava encardido assim por ter atravessado os desertos bíblicos?

Feliz Natal, José Aparecido! Aqui, choro de emoção por ter encontrado assim o Natal!

Blumenau, 14 de Dezembro de 2008.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).


Nenhum comentário:

Postar um comentário