segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Fazer das conquistas presentes


* Por Frei Betto


O inconsciente histórico brasileiro é repleto de mitos. Como o brasileiro “cordial”, numa interpretação equivocada do que assinalou Sérgio Buarque de Hollanda. Cordial sim, de cordis, coração, por agir mais movido pelo coração do que pela razão. O que explica o paradoxo dos defensores “da família” serem os mesmos que incentivam a homofobia, a exclusão e os preconceitos.

Alardeia-se que somos um povo pacífico, no esforço de favorecer o memoricídio que encobre as inúmeras revoltas que marcam a história do Brasil. O fracasso da tentativa de escravizar nossos indígenas é atribuído à benevolência dos portugueses. Pouco se considera a própria resistência indígena.

A abolição oficial da escravatura em 1888 teria sido um presente da generosa princesa Isabel. Ora, basta um pouco mais de atenção à história para constatar como foi árdua a luta dos negros escravizados, dos quilombos e das forças políticas abolicionistas que se posicionaram contra o pelourinho.

A República teria sido dádiva dos militares, assim como mais tarde Getúlio Vargas teria nos dado a legislação trabalhista que alforriou o nosso operariado do regime de semiescravidão. Assim, silenciam-se acirradas lutas, desde a segunda metade do século XIX, de anarquistas, comunistas e sindicalistas.

A ditadura militar teria concedido aos idosos da zona rural a aposentadoria compulsória. E pouco se fala das décadas de lutas pela reforma agrária e do papel libertário das Ligas Camponesas.

Os governos Lula teriam implantado programas sociais, como o combate à fome, a demarcação de terras indígenas, os benefícios a idosos, estudantes, pessoas portadoras de deficiências etc.

Ora, o PT, fundado em 1980, resultou da confluência das Comunidades Eclesiais de Base, do sindicalismo combativo e dos remanescentes das esquerdas que enfrentaram a ditadura. Portanto, eleito presidente em 2002, Lula simbolizava o resultado de pelo menos 40 anos de lutas populares.

Na história não há direitos regalados e sim conquistados. O que prevalece, entretanto, é a versão de quem está por cima. Versão que visa a encobrir a crueldade da repressão, os crimes hediondos das forças policiais e militares, a chibata, o pau-de-arara, o choque elétrico, as greves e mobilizações, enfim, rios de sangue derramados para que, ao menos na letra da lei, fossem conquistados direitos mínimos de cidadania. Quando serão abertos os arquivos da Guerra do Paraguai?

A versão do poder impregna o inconsciente coletivo e tende a imobilizar. Sobretudo quando o governo agarra o violino com a mão esquerda e toca com a direita. As mobilizações arrefecem, embora a insatisfação se amplie.

O Brasil se parece ao Titanic. Embora à deriva, muitos acreditam que ele aportará em solo firme em 2018. A orquestra do “vai melhorar” continua a soar aos nossos ouvidos, embora a água já nos atinja a cintura…

Duas lições aprendi em minha passagem pelo Planalto: o poder não muda ninguém, faz com que a pessoa se revele. E governo é como feijão, só funciona na panela de pressão.


* Frei Betto é escritor, autor de “O que a vida me ensinou” (Saraiva), entre outros livros.




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