terça-feira, 19 de dezembro de 2017

A velha mangueira


* Por Evelyne Furtado



Sempre que lembro da casa dos meus avós, visualizo a velha mangueira que testemunhou alegrias, festas, almoços familiares, reuniões afetivas e políticas, e como não poderia deixar de ser, também os momentos de tristezas que feriram nossa família.

Aquela casa recebia com afeto e abundância. A anfitriã era esmerada nos cuidados e simples na acolhida. O seu lar era o lar de sua família e dos amigos; dos amigos dos filhos e dos amigos dos netos. Também era das pessoas mais necessitadas que iam pedir alguma coisa. Era de todos que ali viessem buscar ou levar algo.

A casa da nossa família teve dois momentos. Num primeiro momento foi regida com alegria e ordem por minha avó. Nada escapava ao seu olhar atento e ela própria cuidava das suas flores com o apoio de Francisco, o menino jardineiro. Sentíamo-nos à vontade para levarmos nossos amigos ali, mas ninguém ousava bagunçar, nem sair do espaço destinado aos mais jovens.

Com a morte de minha avó, a casa adotou outro rito. Vovô que nunca havia se ligado a nenhum aspecto doméstico, assumiu as rédeas do lar e deu seu tom. Acabou-se a formalidade. Ele, altivo e boêmio, não permitia que nenhum dos filhos se metesse na sua administração. Em compensação os netos homens não saíam de lá, onde compartilhavam com o avô da cerveja e da boa mesa.

Aquele teto nunca ficou vazio. Sempre havia muita gente por lá. Mas a ocasião nem sempre foi de festa. Amigos em grande quantidade lá estiveram para levar solidariedade nas perdas que afligiram nossa família.

Recordo a tristeza de um entardecer sombrio quando entrei, menina de 11 anos, pelo grande portão de ferro. Havia muitas pessoas no jardim, na varanda, nas salas. Alguns rostos eram-me conhecidos, outros não. E eu via uma tristeza profunda no semblante de cada um. Era o primeiro golpe no peito do velho boêmio. A perda do filho jovem e sentida por grande parte da cidade. Outras viriam e todas o atingiriam no âmago.

Minha avó não suportou outra. Ele agüentou mais três e nunca fraquejou. A dor era visível. O desalento também. Mas assim como da primeira vez, foi ele quem, após um período de luto, bateu palmas com força, no terraço, ao lado da mesma mangueira e disse: "amanhã, os meninos voltam ao colégio e todos retornam à vida normal." Ninguém o desobedeceu e a dor passou a ser apenas sentida, não mais cultuada.

A última vez que estive com meu avô, foi lá no terraço, perto da mangueira, no final de 1993. Ele, aos 80 anos, parecia forte e como sempre estava acompanhado de amigos naquela manhã. Conversamos sobre o livro de crônicas de Nélson Rodrigues com o qual eu o havia presenteado no natal. Naquela noite vovô Luís sentiu uma dor forte e foi hospitalizado. Uma semana depois nos deixou.

A casa foi vendida há pouco. Hoje passei em frente e vi com consternação o estado lastimável daquela bonita e original edificação. Acabou-se a casa do meu avô. A velha mangueira ainda está lá, embora também quase no fim.

As lições de humanidade e união, ao contrário, permanecem em cada um de nós que continuamos nos reunindo com direito a alegrias, cerveja, discurso e choro.

* Poetisa, cronista e psicóloga de Natal/RN


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