sábado, 4 de novembro de 2017

Bebendo dos lábios


A vida nas grandes cidades –, embora haja consenso que seja estressante, eterna correria e um rosário interminável de preocupações – nos prende de forma tal que raramente conseguimos nos desvincular dela. Principalmente se temos acesso aos bens e facilidades que relativamente poucos têm, como uma casa confortável, bem mobiliada e de preferência totalmente paga e em um bom bairro, um carro potente (se possível do ano), uma conta bancária razoavelmente recheada e toda essa parafernália tecnológica que, embora cara, facilita nossas tarefas e nos confere conforto e segurança. Além, claro, de amplas possibilidades de acesso ao consumo, quer do essencial, quer do supérfluo.

Raros, contudo, são os que, mesmo gozando de todas as regalias mencionadas, não sonham em jogar, um dia, tudo para o alto. Poucos são os que jamais fantasiaram em retornar ao convívio da natureza, na companhia da pessoa amada (quem a tem, óbvio) ou de alguma bela mulher que satisfaça todos os seus mais requintados caprichos e fantasias, em alguma remota e paradisíaca ilha (e nem precisa ser em alguma dos Mares do Sul, na imensidão do Pacífico. Pode ser aqui mesmo, em nosso vasto e luxuriante litoral).

Alguns acham que poderiam ter essa vida de sonhos em alguma montanha, na Chapada Diamantina, quem sabe, ou na Chapada dos Veadeiros ou, mesmo, no Pantanal. Lugares fantásticos, que nos parecem a reprodução do Éden original, isolados, longe do que se convencionou chamar de “civilização”, é que não faltam neste Brasil continente.

O que falta é coragem para largar essa vidinha, confortável, é verdade, porém medíocre e não raro rotineira. A maioria restringe-se, apenas, ao sonho, secretíssimo, por sinal, que as pessoas não revelam nem para o amigo mais íntimo. Sequer deixam-no registrado em algum eventual diário.

Coisas para chatear, convenhamos, é que não faltam. Pelo contrário, abundam. É o trânsito caótico, com seus engarrafamentos quilométricos, a testar, várias vezes ao dia, nossa paciência e nosso equilíbrio. É a escassez de estacionamentos, fazendo-nos perder um tempo enorme ou levando-nos a nos submeter à exploração dos que dispõem de vagas para nossos carros, desde que paguemos o “olho da cara”. São as reprimendas, justas e injustas, de patrões e de chefes. É a violência urbana, ameaçando permanentemente nossa integridade física e do patrimônio, que levamos anos e mais anos para amealhar. Poderíamos alinhavar uma infinidade de pequenos e maiúsculos aborrecimentos, que nos estressam, aborrecem, irritam e nos deixam à beira de um ataque de nervos, quando não da loucura.

E por que não nos livramos disso tudo? A verdade é porque a maioria de nós não sobreviveria (não, pelo menos, com decência e dignidade) sequer por um reles dia inteiro nos recantos paradisíacos que fantasiamos, mas que, na verdade, para nós, homens urbanos, que não temos a menor familiaridade com a natureza, não são tão paraísos assim.

Conheço crianças, por exemplo, que nunca viram, “ao vivo e a cores”, uma galinha, a não ser os frangos comprados nos supermercados ou os já assados, que fazem as vezes de mistura nos almoços de domingo. Vacas, cavalos, porcos e cabras? Nem pensar! E há muito marmanjo, que nunca saiu da cidade, que também jamais esteve frente a frente com algum desses bichos. Que chances essas pessoas teriam em uma ilha como a que Robinson Crusoé teria vivido por um tempão? Nenhuma!

Como passar, por exemplo, um só dia sem eletricidade? E sem nosso inseparável computador? E sem o fogão a gás, o microondas, a cama confortável e vasta? Já nem digo sem a onipresente televisão a cabo.

Como garantir as três refeições do dia, se o supermercado mais próximo dista 300 quilômetros ou mais do nosso hipotético paraíso de fantasia? Ainda assim, raros já não sonharam com uma vida despojada, livre, sem estresse e preocupações, num remoto recanto que só Deus sabe onde fica.

Não vou negar, esse é um desejo recorrente meu (também sou filho de Deus!). Eu, pelo menos, tenho a vantagem de conhecer de perto os bichos (alguns, e domésticos) já que, na tenra infância, fui criado numa fazenda remota (remotíssima) no distante Noroeste do Rio Grande do Sul. Ainda assim... Provavelmente não sobreviveria mais que 24 horas nesse paraíso dos meus sonhos.

Mas que, se aprendesse a viver sem os luxos e facilidades a que estou acostumado na cidade, seria maravilhoso privar da companhia onipresente da doce amada (se ela e eu nunca envelhecêssemos, claro, e conservássemos o tesão que sempre nos ligou), em um fantástico Éden tropical, ah, isso seria mesmo!!!

Talvez, então, tornasse reais estes versos do poeta maranhense Luís Augusto Cassas (que integram seu poema intitulado “Torpedo à moda antigona”) e diria à minha caríssima metade:

Contigo eu moraria
numa casinha de palha
à beira da praia
onde o vento faz a curva
e viveria de brisa
bebendo em teus lábios
a água que vem da chuva”.

Todavia, como não tenho coragem... Contento-me em amá-la, estressado, nervoso, desesperado e enlouquecido, aqui mesmo, no conforto do que se convencionou chamar de “civilização”. Mesmo sem beber em seus lábios a água que vem da chuva...


Boa leitura!


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