quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Aimar Kãm-Rem



* Por Urda Alice Klueger

Hoje conheci o Sr. Aimar Kãm-Rem, e ainda estou emocionada por ter tido a oportunidade. Quem é ele? Um artista do cinema internacional, um famoso cientista estrangeiro? Nada disso, Aimar Kãm-Rem é genuinamente catarinense, mais genuinamente catarinense do que qualquer um de vocês que estão lendo este texto e, apesar de falar corretamente o português, na sua casa ainda se fala a antiga língua que era falada em Santa Catarina antes de Cabral e do Dr. Blumenau, a língua Jê, ou Tapuia, da qual ouvimos breve referência no tempo da escola.

Teria eu ido a um congresso de antropologia, ou a uma palestra sobre a FUNAI? Não, eu estava sentada à minha mesa no banco onde trabalho, e ele apareceu lá. Era um senhor bem vestido, de porte digno, com pouco mais de 60 anos e, à primeira vista, achei que seu rosto asiático se devia a alguma mestiçagem com japonês. Dirigiu-se a mim com a educação de um japonês, e seu português era correto e fluente, e eu nunca pensaria que aquele era um dos legítimos herdeiros do povo Xokleng, descendente direto dos seus caciques. Ele queria saber como se fazia para abrir uma caderneta de poupança. Expliquei-lhe e, ainda achando que estava lidando com um descendente de japoneses, pedi-lhe seus documentos. E quando ele me deu a Carteira de Identidade, eu amoleci por dentro, me arrepiei, fiquei besta: aquele homem era a História e a Imaginação, o Passado e a Tragédia. Tenho certeza de que ele não entenderia se eu lhe dissesse tudo isto, e não lhe disse, mas confirmei:
- O senhor é descendente do cacique Kam-Rem?

Ele era neto.

Deixem-me explicar a minha emoção.

Lá por 1988 eu passei quatro meses estudando tudo o que encontrei sobre o povo Xokleng, os primitivos habitantes da nossa terra de Santa Catarina, povo formado de bravos que se negaram ao extermínio e à amizade corrupta do branco durante quatro séculos. Foi só na segunda década do século XX que Eduardo de Lima e Silva Hoerhan, neto do Duque de Caxias e seguidor da filosofia de Marechal Rondon (“Morrer, se for preciso; matar nunca!”), conseguiu a amizade da tribo arredia, amizade conquistada às custas de muita música de gramofone tocada sob as arcada da floresta de região de Ibirama/SC. A música criou os primeiros laços: Eduardo cuidou do resto, e, aldeando a tribo, impediu o seu extermínio, já que na ocasião, tínhamos um genocídio institucionalizado em toda a região, genocídio que chegou aos tribunais internacionais e foi condenado em todo mundo. Dei apenas linhas gerais do que aprendi sobre os Xoklengs – aprendi muito mais, precisava de dados para escrever o capítulo inicial do meu livro “Cruzeiros do Sul”, romance que conta a formação do povo catarinense. E lembro muito bem de que, na época da pacificação, o cacique dos Xoklengs chamava-se Kam-Rem.

Em cima do verdadeiro cacique Kam-Rem criei o meu personagem Kam-Rem, cacique do povo Xokleng 300 anos antes, um imaginário cacique calcado num cacique real. A grafia dos nomes difere da do homem que conheci hoje, mas o som é o mesmo, e meu coração se acelerou de curiosidade e magia. Ele era nascido em Ibirama, em 1932, e era filho de Kundagn Yupliu e Rosa Káv-Vân Priprá, este último, também velho nome tribal que eu conhecia. Não podia haver dúvidas de que ele era um neto ilustre, que descendia dos antigos príncipes desta nossa terra, e puxei conversa sem complicar demais (acho que ele não iria entender se eu lhe falasse que era romancista e essas coisa assim). Perguntei-lhe se conhecera o polêmico Eduardo, e o que pensava dele. Sim, conhecera e gostara de Eduardo, quis saber se eu o conhecera também. Não, eu não tivera o prazer, apenas lera sobre Eduardo de Lima e Silva Hoerhan em livros, e o olhar inteligente de Aimar Kãm-Rem me confirmou que ele entendia que se pudessem aprender tais coisas em livros. Quis saber se ele chegara a morar no mato, no tempo em que os Xoklengs continuaram seminômades. Não, ele não morara. Nascera quase vinte anos depois que a tribo tinha sido “amansada” (foi ele quem usou a expressão que acho aviltante), e sempre morara no aldeamento ou na cidade. Na verdade, ele demonstrava ter tido uma excelente educação à la europeia, inclusive razoável educação escolar, e seu porte era o porte digno de um homem de mais de 60 anos que se sente ajustado à sociedade em que vive.

Eu acabara de abrir a sua caderneta de poupança, e ele tinha que se ir. Pedi-lhe que me procurasse quanto voltasse ao banco. E ele se foi, sem imaginar as emoções que desencadeara em mim. Fiquei observando-o dirigir-se para a rua, com sua camisa xadrez e sua calça jeans – parecia mais com um japonês alto do que com um herdeiro de príncipes ameríndios. Aimar Kãm-Rem era inteligente, mas com certeza, não sabia do seu valor como herdeiro da História.


Blumenau, 01 de Abril de 1996.


* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).





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