segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Ensino religioso ou ensino das religiões e iniciação à vida do espírito?


* Por Leonardo Boff


Corre no STF a discussão se nas escolas, pode ou não haver ensino religioso. O termo “ensino religioso” leva a equívocos pois contém uma conotação confessional. Num Estado laico como o brasileiro, que acolhe e respeita todas as religiões sem aderir a nenhuma delas, o correto seria dizer “ensino das religiões”. Pertence à cultura geral, que os estudantes tenham noções básicas das religiões  praticadas na humanidade. Tal estudo possui o mesmo direito de cidadania que o da história universal ou das ciências e das artes. O termo correto seria, portanto, o “ensino das religiões”.

Entretanto, o mais importante seria iniciar os estudantes na espiritualidade como é entendida hoje pelos estudiosos. Não se trata de uma derivação da religião, o que pode ser, mas esta não possui o monopólio da espiritualidade. A espiritualidade é um dado antropológico de base como é a inteligência, a vontade e a libido.

O ser humano além de possuir uma exterioridade (corpo) e uma interioridade (psiqué), possui também uma profundidade (espírito). O espírito é aquele momento da consciência em que cada um se capta a si mesmo como parte de um todo e se pergunta pelo sentido da vida e de seu lugar no conjunto dos seres.

Talvez melhor que um filósofo, um escritor nos possa esclarecer o que seja o espírito e a vida do espírito. Antoine de Saint Exupéry, autor do Pequeno Príncipe,  deixou uma carta póstuma de 1943 e somente publicada em 1956. Intitulava-se “Carta ao General X”. Ai escreveu:”Não há senão um problema, somente um: redescobrir que há uma vida do espírito que é ainda mais alta que a vida da inteligência, a única que pode satisfazer o ser humano”(Dare un senso a la vita, Macondo Libri  2015 p. 31).

Para ele, a vida do espírito ou a espiritualidade é feita de amor, de solidariedade, de compaixão, de companheirismo e de sentido poético da vida. Se esta vida do espírito fosse cultivada, não haveria o absurdo dos milhões de mortos na segunda guerra mundial. É o que mais faz falta hoje no mundo. Pelo fato de a vida do espírito vir coberta por um manto de cinzas de egoismo, indiferença, cinismo e ódio é que as sociedades se tornaram desumanas. Saint Exupéry chega a dizer:”temos necessidade de um deus”(p.36).

Esse Deus não vem de fora. Ele é aquela Energia ponderosa e amorosa que os cosmólogos chamam de Energia de Fundo do Universo, inominável e misteriosa da qual saíram todos os seres e são sustentados, a cada momento, por ela. E nós também. Cosmólogos como Brian Swimme e Freeman Dyson chamam de Abismo Alimentador de Tudo ou de Fonte Originária de todos os Seres. Deus deve ser pensado nesta linha.

É próprio da  vida do espírito poder abrir-se a essa Realidade, deixar-se tomar por ela e entrar em diálogo com ela. O resultado é ter uma experiência de transcendência, sentindo-se mais sensível e humano.

Há uma base biológica para a vida do espírito.  Neurocientistas, a partir dos anos 90 do século passado, constataram que sempre que o ser humano aborda temas ligados a um sentido profundo da vida e ao Sagrado. verifica-se uma grande aceleração dos neurônios dos lobos temporais. Chamaram a isso “o ponto Deus no cérebro”. Assim como temos órgãos exteriores como os olhos, os ouvidos e o tato, temos também um órgão interior, que é nossa vantagem evolutiva, pela qual captamos essa Realidade misteriosa que nos circunda e tudo sustenta.

Deter-se sobre esta Realidade e entrar em diálogo com ela, nos torna mais humanos, menos violentos e agressivos. Danah Zohar, física quântica e seu marido psiquiatra  Ian Marshall, escreveram um convincente livro sobre o “ponto Deus no cérebro” denominando-o de “inteligência espiritual”(Record, Rio 2000). Assim somos dotados de três tipos de inteligência: a intelectual, a emocional e a espiritual. Cumpre articular as três para sermos mais plenamente humanos.

Estimo que as escolas além de fornecer um ensino das religiões, ganhariam enormemente se iniciassem os estudantes na vida do espírito. Quem estaria apto para orientar esta prática? Professores de psicologia, de pedagogia, de filosofia e de história. A aula poderia ser dividida em duas partes: nos primeiros vinte minutos pequenos grupos discutiriam um tópico de algum mestre do espírito de distintas procedências. Procurariam internalizar tais conteúdos. Nos outros vinte minutos seria colocar em comum o que refletiram e abrir um debate aberto.

Como alternativa, pode-se também reservar um tempo para cada estudante recolher-se, auscultar sua profundidade e ver o que daí sai: bons e maus sentimentos, conhecendo-se a si mesmo e propondo-se a fortalecer os bons e colocar os maus  sob controle. Assim sentiria a vida do espírito, consciente e pessoal.

Temos como matar a fome de pão. Precisamos matar a fome de vida espiritual, que se nota por todos os lados. Ela “seria a única a satisfazer o ser humano”.


* Leonardo Boff é teólogo e autor de “Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito”, “Cuidar da Terra-Proteger a vida” (Record, 2010) e “A oração de São Francisco”, Vozes (2009 e 2010), entre outros tantos livros de sucesso. Escreveu, com Mark Hathway, “The Tao of Liberation exploring the ecology on transformation”, “Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz” (Vozes, 2009). Foi observador na COP-16, realizada recentemente em Cancun, no México.




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