Crivella,
o pimbinha, a freira e a fera
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Já
te contei, leitor (a), que meu irmão é artista plástico? Não?
Então conto agora. O Tuta tinha nove anos, em 1958, quando
participou do concurso infantil “Desenhe seu bairro” promovido
pelo Colégio Aparecida, em Manaus. As melhores obras seriam expostas
no salão do Clube do Luso e receberiam prêmios do então candidato
a governador, Gilberto Mestrinho, que morava na rua Alexandre Amorim,
quase ao lado da escola. Tuta foi desclassificado por escandalizar a
diretora, irmã Anunciata, que chamou dona Elisa na sala da
diretoria:
-
Olhe só a obra do seu filho!
Mamãe
olhou. Era uma “obra” mesmo, que refletia o talento do rebento.
Lá figurava, pintada com lápis de cor, uma moça de pescoço
alongado à la Modigliani, sentada num penico transparente, obrando,
com o bundão exposto, observada pela imagem de um menino seminu. Tal
qual a carta de Pero Vaz de Caminha, tudo muito natural. Os
personagens foram logo identificados. Não havia dúvidas: a
pescoçuda era nossa vizinha Vera, mais conhecida como “Fera”,
espreitada por seu sobrinho, Heraldo Pimbinha, reconhecido pelo
tamanho diminuto da dita cuja que deu origem ao apelido.
-
Tuta, tu já me viste defecando para me fotografar
assim
– reclamou a Fera ferida, que confundia desenho com foto. Não
entendeu que se tratava de uma forma de abordar cenas do cotidiano.
Se fosse hoje, Tuta responderia:
- Ceci
n´est pas une “pimbe” (une
petite bite).
Mas na época, meu prendado irmão apenas balbuciou candidamente:
- É
somente um desenho.
E
era. Inocente. Ele havia se inspirado no óleo sobre tela – A
Primeira Missa no Brasil -
de Victor Meirelles, com índios seminus, reproduzida no livro
didático “Infância Brasileira” do Ariosto Espinheira. Mas a
freira projetou ali pornografia, indecência, pecado. Vetou a obra
por seu conteúdo impróprio.
-
A arte não pode estimular a perversão” – disse irmã Anunciata,
conhecida como “Roxinha”. Sugeriu que Tuta usasse seu inegável
dom para retratar celebridades, por exemplo, o ilustre vizinho
candidato a governador. Nesse caso, a freira pintou como eu pinto um
futuro glorioso para meu mano, com galeria em Miami, vendendo sua
arte para a Disney, a Pepsi, a General Motors. Um dia seria o Thutta
ou o Tutta, qual Romero Britto que nem nascido era, mas já circulava
por lá, carregando dois "t".
Obra
Aberta
Eis
o que eu queria dizer: o Brasil inteiro cabe no tempo mítico do
bairro de Aparecida, que já vivenciou tudo aquilo que acontece e
ainda vai acontecer no planeta. Assim é que, sessenta anos depois,
Marcelo Crivella (PRB, vixe vixe), com a máscara de irmã Anunciata,
reedita as palavras dela em entrevista na qual vetou a
exposição Queermuseu
– Cartografias da Diferença na Arte Brasileira,
com 270 obras de 90 artistas, por considerar seu “conteúdo
impróprio”. O prefeito, que reencarnou a freira, ainda debochou:
-
Aqui no Rio a
gente não
quer essa exposição. Saiu no jornal que ia ser no MAR. Só se for
no fundo do mar, porque no Museu de Arte do Rio nããão!
Zoofilia, pedofilia, ninguém quer
saber disso”.
“A
gente” que ele diz é sua corriola. “Ninguém” somos nós. O
bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, em censura
prévia, determina o que “ninguém” pode ver, para dessa forma
“banir o pecado” potencial da heroica cidade de São Sebastião
que ele desgoverna. O pecado, porém, não reside nas 270 obras, se
aceitamos o modelo teórico para entender a arte contemporânea
criado por Umberto Eco em sua Obra
Aberta. Onde
mora então o pecado?
Toda
obra de arte, por definição, é aberta, permite diferentes
interpretações – escreve Eco, que chama a atenção para a
pluralidade de sentidos. Qualquer criação artística que implica
linguagem – texto literário, música, obra pictórica, escultura –
é um enunciado, cujos sentidos vão se “materializando” na
leitura, isto é, nas múltiplas interpretações que lhe atribuem
significados. O leitor é um coenunciador responsável por criar
sentidos a partir delas, com seus próprios valores que, ao contrário
da igreja de Crivella, não são “universais”. Portanto, não há
leitura única que monopolize a significação.
Mente
suja
Livros
e autores foram queimados em períodos obscurantistas da História,
na Santa Inquisição ou mais recentemente durante o nazi-fascismo.
Quem detinha o poder fazia uma leitura única, doentia, que negava a
possibilidade de múltiplas interpretações por considerá-las
contrárias aos dogmas religiosos e políticos. Mas se Umberto Eco
tem razão – e ele tem - considerar uma criação artística como
pecaminosa revela muito mais sobre quem a interpreta do que sobre a
obra em questão. O pecado, então, mora ao lado, está na mente
pervertida de quem faz tal leitura.
Nesse
caso, a obra aberta encontra a mente fechada. Como admitir que 90
artistas brasileiros, dos mais expressivos, defendem a pedofilia e a
zoofilia, apenas porque discutem a diversidade sexual? Como o
prefeito de uma metrópole toma decisão, em pleno século XXI,
baseado em uma bobagem dessas? Crivella não é crítico de arte e
sequer viu a exposição, que aliás só deve ser visitada pelos que
pretendem massagear a inteligência e procuram a fruição e o gozo –
epa! – estético. Não é o caso do prefeito.
Dezenas
de diretores de museus e de gestores de centros culturais assinaram
carta aberta contra a tentativa de “proibir as legítimas
atividades artísticas que se desenvolvem no Brasil, construídas
responsavelmente pelas instituições culturais”. Consideram falsas
as delirantes “alegações de incitação à pedofilia e de
apologia ao sexo”, já descartadas pelo promotor da Infância, de
Porto Alegre, de onde a exposição foi escorraçada por covardia do
banco Santander, o patrocinador.
O
Conselho do Museu de Arte do Rio (CONMAR) também rejeitou a censura
e se pronunciou favorável à realização da mostra e da liberdade
de expressão. Mas quem decide, em última instância, é o
bispo-prefeito de mente poluída.
-
Cada um deve ter a liberdade de escolher se quer ou não ver as obras
– declarou a atriz Fernanda Montenegro. Quem quer ver, veja. Quem
não quer, não veja. O que não pode – completou o jurista Gutavo
Binenbojm – é permitir que uma confissão religiosa colonize as
decisões dos governantes, quando a Constituição garante a
separação entre a igreja e o estado.
O
cerco parece estar se fechando contra a liberdade de expressão. Zé
Celso, que está remontando “O Rei da Vela”, garante que “jogada
às traças, a população reflete, deseja, quer mandar tudo às
picas. Mas uma esquerda presa ao passado não saberá articular a
revolta”. Será? De qualquer forma, o Rio está sendo tratado
como o quintal de Crivella que se arvora em defensor da honra do
Pimbinha e da Fera que não está sendo atacada. Devemos protestar
enquanto ainda podemos. Até quando?
*
Jornalista e historiador.
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