sábado, 7 de outubro de 2017

A mancha humana

* Por Philip Roth

(…) - É o resultado de ter sido criado entre nós - disse Faunia. - É o resultado de passar toda a vida com pessoas como nós. A mancha humana - acrescentou, mas sem repulsa, desprezo ou condenação. Nem sequer com tristeza. As coisas são como são - à sua maneira seca e concisa, era só isso que ela estava a dizer à moça que dava de comer à serpente: nós deixamos uma mancha, deixamos um rastro, deixamos a nossa marca. Impureza, crueldade, mau trato, erro, excremento, sêmen. Não há outra maneira de estar aqui. Não tem nada a ver com desobediência. Nem com graça, ou salvação, ou redenção. Está em todos. Sopro interior. Inerente. Determinante. A mancha que existe antes da sua marca. Sem o sinal de que está lá. A mancha que é tão intrínseca que não precisa de uma marca. A mancha que precede a desobediência, que engloba a desobediência e confunde toda e qualquer explicação e compreensão. É por isso que toda a purificação é uma anedota. É uma anedota básica, ainda por cima. A fantasia da pureza é aterradora. É demencial. O que á ânsia de purificar senão impureza?


Tudo quanto estava dizendo acerca da mancha era que ela é inelutável. Essa era, naturalmente, a visão de Faunia a esse respeito: as criaturas inevitavelmente manchadas que nós somos. Resignada com a horrível imperfeição elementar. Ela é como os Gregos, como os Gregos de Coleman. Como os seus deuses. Eles são mesquinhos. Brigam. Lutam. Odeiam. Assassinam. Fodem. Zeus não quer fazer outra coisa senão foder - deusas, mortais, bezerras, ursas -, e não apenas na sua própria forma, mas também, ainda mais excitantemente, assumindo a forma visível de animal. Para montar colossalmente uma mulher como um touro. Para a penetrar excentricamente como um cisne branco de asas agitadas. Nunca há carne suficiente para o rei dos deuses, nem carne nem perversidade. Toda a loucura que o desejo gera. A devassidão. A depravação. Os prazeres mais grosseiros. E a fúria da esposa que tudo vê.

Não o deus hebraico, infinitamente só, infinitamente obscuro, monomaniacamente o único deus que existe, existiu e jamais existirá, sem nada melhor para fazer do que preocupar-se com os judeus. Nem o perfeitamente dessexuado homem-deus cristão, e a sua mãe imaculada, e toda a culpa e vergonha que uma espiritualidade sublime inspira. Antes, o Zeus grego, enredado em aventuras, vivamente expressivo, caprichoso, sensual, exuberantemente ligado à sua própria existência opulenta, tudo menos só e tudo menos oculto. Antes a mancha divina.

Uma grande religião refletora da realidade para Faunia Farley se, por intermédio de Coleman, ela tivesse aprendido alguma coisa a esse respeito. Pelos padrões da fantasia hubrística, feita à imagem de Deus, sem dúvida, mas não do nosso: do deles. Deus devasso. Deus corrupto. Um deus da vida, se algum houve. Deus à imagem do homem (...) 

***

(…) Porque nós não sabemos, pois não? Toda a gente sabe. O que faz as coisas acontecerem da maneira que acontecem? O que está subjacente á anarquia da sequência dos acontecimentos, às incertezas, às contrariedades, à desunião, às irregularidades chocantes que definem os assuntos humanos? Ninguém sabe, professora Roux. «Toda a gente sabe» é a invocação do lugar-comum e o inimigo da banalização da experiência, e o que se torna tão insuportável é a solenidade e a noção da autoridade que as pessoas sentem quando exprimem o lugar-comum. O que nós sabemos é que, de um modo que não tem nada de lugar-comum, ninguém sabe coisa nenhuma. Não podemos saber nada. Mesmo as coisas que sabemos, não as sabemos. Intenção? Motivo? Consequência? Significado? É espantosa a quantidade de coisas que não sabemos. E mais espantoso ainda é o que passa por saber (...)



in "A Mancha Humana"



* Romancista norte-americano.

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