A
hora das coisas
* Por
Assionara Souza
O
silêncio percorre em desespero todos os aposentos da casa. As duas
irmãs pressentem a hora das coisas. Laura sempre foge para o jardim.
Tem medo que o tempo sufoque seus onze anos. Assim como deforma a
casa.
A
luz do sol desliza as mãos mornas na parede principal da sala. Uma
carícia pesada que adormece devagar as cores e desperta figuras
disformes das lascas de tinta que se desprendem. As torneiras choram.
O gato esfrega-se feito sombra aos móveis que serviram a outras
casas antes de vir parar ali. Laura não quer que a mão do tempo a
puxe para a hora das coisas. O vestido amarelo é novo. Responde às
rosas vigorosas que a roseira sustenta; à revelia do que o tempo
contamina.
Agradam-lhe
as rosas. Permitem-se tocar pelo vento como que entontecidas. O
coração de Laura vibra dentro da pele em roupa nova. Existe música
no jardim. Por trás do silêncio. As coisas adormecidas e doentes
não chegam ali. Não podem estancar a música que os seus
pensamentos criam da partitura do vento.
Laura
cerra a vista para que o rastro vermelho das rosas tinja o campo da
tela de seus olhos. E sussurra a música inventada. Isso acalma seu
pequeno e vasto coração.
Dentro
da casa finita, Ana prepara-se para o banho. Os braços cruzados e as
mãos agarradas à barra da blusa. Os gestos são pesados. Sua
juventude cheia de desejos atravessa o dia sem que nada aconteça.
Respira fundo e ergue a roupa sentindo por um tempo o cheiro do corpo
que fica no tecido. O seu cheiro disperso sem que ninguém o venha
colher.
Molha
as mãos na água morna que escorre do encanamento antigo. Sente que
o seu corpo é observado. Como se as coisas invejassem a vida nela.
Uma inveja que deseja tocá-la. Ferindo-a. Ela corresponde ao desejo
das coisas. Acaricia a água morna e leva as mãos aos seios. Os
olhos fechados. As coisas corrompem sua adolescência. E a casa a
envolve num abraço frio. O masculino do silêncio em suas mãos. Ana
entrega-se ao exercício de entender como o silêncio atinge seu
corpo. O braço do vento arrepia os pelos.
Sinais de um temporal que se aproxima. Ana gosta das tempestades. Em
noites assim, apaga as luzes do quarto e vai à janela surpreender os
gritos vermelhos das rosas despertadas em pânico pelo romper dos
relâmpagos.
Mas
neste dia não haverá noite.
Com
a irmã, Laura aprendera a amar as rosas. Às vezes encosta os lábios
delicadamente nos botões que guardam a fúria do desabrochar. Os
dedos frágeis pressionam os espinhos. Fecha os olhos de tanto
sentir. Assim é estar viva. Cada uma de suas tardes são como os
botões de rosa. Esta abre-se em definitivos tons de vermelho. Como
se pudesse vingar-se das coisas.
Uma
lâmina afiada percorre a carne branca dos pulsos. A água morna abre
em intervalos mais fortes os sulcos da pele — enquanto Laura cresce
no jardim.
Entre
as roseiras, a menina corre o carrossel de seu vestido amarelo.
Mas
sente tingir-se das rosas. E para
de repente; surpreendida. Respira ofegante. O vermelho também faz
parte dela. Líquido escorrendo devagar em sua perna. Fez medo
existir tão intenso, no meio da tarde; no meio do jardim; sozinha.
Os dedos pequenos manchados. O vestido amarelo manchado.
Talvez
Ana a fizesse compreender.
A
noite arrasta-se pelos vãos. Os olhos de Ana enchem-se de uma escura
vertigem. Corpo pálido ao chão. Passos nervosos na casa. Vermelho
avançando na pedra antiga do piso.
Enquadrada
na moldura da porta, Laura retém um grito. E contempla a beleza fria
da morte cobrir como um véu o corpo da irmã. O silêncio lambe a
hora das coisas.
No
jardim, o vento açoita com violência os frágeis talos das rosas.
*
Escritora potiguar residente em Curitiba.
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