quarta-feira, 11 de outubro de 2017

A hora das coisas

* Por Assionara Souza

O silêncio percorre em desespero todos os aposentos da casa. As duas irmãs pressentem a hora das coisas. Laura sempre foge para o jardim. Tem medo que o tempo sufoque seus onze anos. Assim como deforma a casa.

A luz do sol desliza as mãos mornas na parede principal da sala. Uma carícia pesada que adormece devagar as cores e desperta figuras disformes das lascas de tinta que se desprendem. As torneiras choram. O gato esfrega-se feito sombra aos móveis que serviram a outras casas antes de vir parar ali. Laura não quer que a mão do tempo a puxe para a hora das coisas. O vestido amarelo é novo. Responde às rosas vigorosas que a roseira sustenta; à revelia do que o tempo contamina.

Agradam-lhe as rosas. Permitem-se tocar pelo vento como que entontecidas. O coração de Laura vibra dentro da pele em roupa nova. Existe música no jardim. Por trás do silêncio. As coisas adormecidas e doentes não chegam ali. Não podem estancar a música que os seus pensamentos criam da partitura do vento.

Laura cerra a vista para que o rastro vermelho das rosas tinja o campo da tela de seus olhos. E sussurra a música inventada. Isso acalma seu pequeno e vasto coração.

Dentro da casa finita, Ana prepara-se para o banho. Os braços cruzados e as mãos agarradas à barra da blusa. Os gestos são pesados. Sua juventude cheia de desejos atravessa o dia sem que nada aconteça. Respira fundo e ergue a roupa sentindo por um tempo o cheiro do corpo que fica no tecido. O seu cheiro disperso sem que ninguém o venha colher.

Molha as mãos na água morna que escorre do encanamento antigo. Sente que o seu corpo é observado. Como se as coisas invejassem a vida nela. Uma inveja que deseja tocá-la. Ferindo-a. Ela corresponde ao desejo das coisas. Acaricia a água morna e leva as mãos aos seios. Os olhos fechados. As coisas corrompem sua adolescência. E a casa a envolve num abraço frio. O masculino do silêncio em suas mãos. Ana entrega-se ao exercício de entender como o silêncio atinge seu corpo. O braço do vento arrepia os pelos. Sinais de um temporal que se aproxima. Ana gosta das tempestades. Em noites assim, apaga as luzes do quarto e vai à janela surpreender os gritos vermelhos das rosas despertadas em pânico pelo romper dos relâmpagos.

Mas neste dia não haverá noite.

Com a irmã, Laura aprendera a amar as rosas. Às vezes encosta os lábios delicadamente nos botões que guardam a fúria do desabrochar. Os dedos frágeis pressionam os espinhos. Fecha os olhos de tanto sentir. Assim é estar viva. Cada uma de suas tardes são como os botões de rosa. Esta abre-se em definitivos tons de vermelho. Como se pudesse vingar-se das coisas.

Uma lâmina afiada percorre a carne branca dos pulsos. A água morna abre em intervalos mais fortes os sulcos da pele — enquanto Laura cresce no jardim.

Entre as roseiras, a menina corre o carrossel de seu vestido amarelo.

Mas sente tingir-se das rosas. E para de repente; surpreendida. Respira ofegante. O vermelho também faz parte dela. Líquido escorrendo devagar em sua perna. Fez medo existir tão intenso, no meio da tarde; no meio do jardim; sozinha. Os dedos pequenos manchados. O vestido amarelo manchado.

Talvez Ana a fizesse compreender.

A noite arrasta-se pelos vãos. Os olhos de Ana enchem-se de uma escura vertigem. Corpo pálido ao chão. Passos nervosos na casa. Vermelho avançando na pedra antiga do piso.

Enquadrada na moldura da porta, Laura retém um grito. E contempla a beleza fria da morte cobrir como um véu o corpo da irmã. O silêncio lambe a hora das coisas.

No jardim, o vento açoita com violência os frágeis talos das rosas.


* Escritora potiguar residente em Curitiba.


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