sábado, 9 de setembro de 2017

Gente de plástico fede


* Por André Falavigna



Vai ser tudo ao contrário do que o leitor incauto poderia imaginar. É lógico, eu sei, quase não haverá leitores incautos, porque são tão poucos e tão os mesmos os nossos leitores aqui no Literário, que todo mundo sabe mais ou menos o que esperar um do outro (sim, um do outro, porque a maior parte de nossos leitores são os outros escritores daqui, do Literário). Ainda assim, o aviso é válido. Pode ser que algum colega de Comunique-se, enganado com o título, entre todo alegre e saltitante neste link certo de que vai encontrar uma coisa completamente diferente da que aqui está e, depois, fique chateado comigo. Sou terrivelmente boa praça e detesto que se chateiem comigo, sobretudo porque esse tipo de chateação leva as pessoas a me chatearem e, isso, quase sempre, me leva a mandá-las tomar bem dentro daquele lugar. Vamos evitando essa escatologia toda logo de cara e avisando aos raros incautos: neste texto, as pessoas de plástico às quais se refere o título não são de plástico porque, de alguma maneira, sejam insensíveis à desigualdade social, racial e sexual, à destruição da camada de ozônio, às artimanhas da indústria do fumo, ao imperialismo ianque, à opressão dos povos do terceiro mundo, à questão Palestina e, por último, mas não somente, ao direito da mulher de dispor do próprio corrrrrpo (favor pronunciar todos os erres escritos, à maneira carioca de o fazer).

Portanto, se alguém começou a ler este texto procurando mais uma confirmação aos ideais pelos quais deu por bem torcer, pare por aqui. Em matéria de torcida me atenho ao futebol e, eventualmente, ao carnaval. Não acho sensato torcer por ideais. Torço por instituições que, de uma maneira muito mais vaga do que a dos ideais, carregam algum tipo de idéia. Para mim, está claro que o Palmeiras, o Vasco, a Portela, a seleção brasileira de futebol, essas coisas todas são de alguma forma uma idéia, além de serem instituições estabelecidas com nome, endereço, fardamento e representação legal. Por outro lado, a solidariedade bolivariana (por exemplo) é um ideal qualquer cuja aplicação, assim como em todo caso similar (como o apego que no Bixiga se tem pela Vai-Vai, por exemplo também), tem conseqüências no mundo dos vivos, com a singular diferença de que não se pode metê-las, as conseqüências dos ideais, na conta de quem quer que seja. Se a Vai-Vai vai ao fundo do poço, fica uma saudade. Se for ao fundo do poço o objetivo idealista de tornar toda a população mundial magra e boazinha, vão no caminho mundos inteiros. Normalmente, vão-se com as pessoas que estavam dentro deles.

Não duvidem disso. O Jabaquara nem mais existe, a URRS também não. O pessoal que torcia pelo Jabaquara deve ter se arrumado de algum modo. Eram espanhóis, devem ter corintianizado-se de vez. Espanhol é cabeça dura mesmo. De todo modo, torcer pelo Jabaquara nunca fez muito mal a ninguém. Torcer pela URSS deixou muita gente torta até hoje. Isso para não falar de quem não gostava da idéia. Eu odeio o São Paulo e a coisa mais terrível que me pode acontecer é passar nervoso. Vocês precisavam ver o que acontecia com gente que achava a idéia da URSS passível de umas melhoriazinhas.

Compreendam bem: Deus, eu não torço por Deus. O que faço é tentar obedecer, dentro dos meus limitados recursos, umas regras bem básicas que Ele, pessoalmente, instituiu. Sei que essas regras contêm fundamento em uma idéia, mas é que os pensamentos do Homem não são os meus pensamentos e, francamente, duvido que os meus cheguem perto disso um dia. E não adianta vocês insistirem: não vão conseguir me fazer comportar-me como torcedor em mais nenhum outro assunto que não aqueles que a gente só se interessa porque torce. Não a sério.

Esclarecido o fato de que as pessoas de plástico que fedem em meu título não são aquelas às quais todos nos habituamos, quais sejam, as pessoas insensíveis aos belos ideais pelos quais tanta gente torce, quem mais poderiam ser essas pessoas? Quem estou tentando ofender? Sim, porque não me iludo: um título desses foi para ofender alguém, colateralmente. Feder é colateral (há quem feda e preste, e há quem cheire bem e seja grande filha da puta). Se eu quisesse ofender diretamente quem quer que fosse, o título seria muito longo.

Ora, caros leitores, estou falando justamente daquele tipo de gente cuja definição é impossível, mas cujos membros podemos identificar por conta de um reflexo condicionado que seus partícipes manifestam toda vez que conversam conosco. Vamos por partes.

Primeiro: que tipo de gente não se consegue definir jamais? Aquele composto por elementos tão instáveis que, se num determinado momento fazem tal tipo parecer assim, no outro os fazem parecer assado. E por que esse tipo de gente é assim? Porque não é o tipo de gente disposta a entender de verdade o que quer que seja, já que acha muito mais gostoso torcer, pular e dar gritinhos indignados do que se preocupar com coisas como “entender de verdade”. Sim, eis que voltamos à coisa. E podemos começar a falar de como identificar figurinhas de plástico, já que jamais saberemos direito o que elas são.

Segundo: qual é o reflexo condicionado que revela a composição plástica de nossos interlocutores? Pergunta retórica, essa (adoro pergunta retórica). O reflexo condicionado que nos permite a identificação desse espécime é justamente este: pessoas de plástico o são porque precisam escolher algo para torcer o tempo todo, desde que assim se sintam pessoas melhores do que aquelas que elas supõem torcer pela coisa contrária. Assim, há sempre um ou outro militante antitabagista que não está realmente muito interessado em saber algo sobre tabaco. Isso dá um puta trabalho. Ele quer mesmo é se sentir melhor do que o camarada que fuma e, mais ainda, do aquele outro que não faz nada para que o camarada que fuma pare de fumar. Se cruzar com alguém disposto a não só não se meter na vida dos outros, mas a impedir que outros o façam, aí é que ele percebe as melhores condições possíveis e imagináveis para cagar na cabeça de todo o mundo.

O Torcedor Universal pode até se bater por uma boa causa, mas ele nunca sabe bem o que está fazendo e sempre acaba transformando a boa causa em merda. Não tenho a menor dúvida de que tomates plantados sem agrotóxicos são melhores dos que os plantados com agrotóxicos. Eu sei porque já comi dos dois, não porque um deles represente um ideal mais ou menos adequado ao meu visual. Daí a imaginar que seja minimamente razoável a idéia de se oferecer tomates em escala industrial sem plantá-los com agrotóxico vai uma distância imensa. Vai a distância exata entre obter tomates perfeitos para toda a humanidade e foder diversos plantadores de tomate conforme a necessidade política de alguém ou de um grupo interessado em foder plantadores de tomate. Uma vez cumprido o trajeto entre a exigência absurda e a catástrofe conveniente, você fica sem tomates. Mas faz um belo papel.

Nossos militantes, o antitabagista e o comedor de vírus (sim, a maior parte do tomate que deixamos de comer, o deixamos por conta de um vírus veiculado pela saliva de uma mosca branca, a Bemisia argentifolli, para o qual ainda não temos defesas no país), são figuras plásticas. Plástico fede. Eu sei porque fui operador de telemarketing e bebi muita água em squeezy. Qualquer coisa orgânica que se encoste ao plástico fede. Plástico é uma merda. Comida no tupaware é uma merda. Coca-Cola em garrafa plástica é uma porcaria nojenta. Uma coisa que estraga a Coca-Cola pode pôr até sua alma a perder. Pessoas que argumentam contra a Coca-Cola ou são dentistas, ou são de plástico, ou ambos. Em todos os casos, fedem. Isso mesmo. Dentistas vivem cercados por plástico e acabam fedendo como comida de tupaware. Portanto, fedem de qualquer jeito.

Sujeitos que têm opiniões cuja origem eles não querem conhecer plastificam-se e fedem. Quase todo jornalista esportivo fede, porque passa o ano todo repetindo coisas sem atinar com o sentido do que diz. É um berreiro só por organização, modernidade, planejamento e profissionalismo. No dia em que as redações esportivas voltarem a contar com gente alfabetizada, talvez elas mesmas consigam planejar algo para se organizarem de maneira profissional. Pena que isso não vai ser moderno, porque antigamente é que era assim. O sujeito sabia que profissionalismo era aprender a escrever antes de começar a escrever, coisa muito diferente de cumprir horários para matar tempo enquanto se torce por uma idéia. Ativistas, em geral, fedem. São de plástico também. Ativistas camuflados fedem mais ainda. Ativistas involuntários fedem mais do que certas partes íntimas de John Holmes e Ginger Lynn, após um dia de intensa labuta. Você tenta falar com o Ativista Involuntário e ele não sabe do que está falando, mas acha gostoso que, de alguma maneira, você não possa falar algo que sabe. Mesmo tendo opinião para tudo o tempo todo, ele jamais volta atrás em nada.

A Pessoa de Plástico nunca erra, porque ela é portadora de uma idéia para torcer e, quando a gente torce, quer ganhar de qualquer jeito. Roubado é até mais gostoso. Com o tempo, você se acostuma com o mau-cheiro e nem nota mais a coisa.

(*) André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas  publicações eletrônicas.




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