Gente de plástico fede
* Por
André Falavigna
Vai ser tudo ao contrário do
que o leitor incauto poderia imaginar. É lógico, eu sei, quase não
haverá leitores incautos, porque são tão poucos e tão os mesmos
os nossos leitores aqui no Literário, que todo mundo sabe mais ou
menos o que esperar um do outro (sim, um do outro, porque a maior
parte de nossos leitores são os outros escritores daqui, do
Literário). Ainda assim, o aviso é válido. Pode ser que algum
colega de Comunique-se, enganado com o título, entre todo alegre e
saltitante neste link certo de que vai encontrar uma coisa
completamente diferente da que aqui está e, depois, fique chateado
comigo. Sou terrivelmente boa praça e detesto que se chateiem
comigo, sobretudo porque esse tipo de chateação leva as pessoas a
me chatearem e, isso, quase sempre, me leva a mandá-las tomar bem
dentro daquele lugar. Vamos evitando essa escatologia toda logo de
cara e avisando aos raros incautos: neste texto, as pessoas de
plástico às quais se refere o título não são de plástico
porque, de alguma maneira, sejam insensíveis à desigualdade social,
racial e sexual, à destruição da camada de ozônio, às artimanhas
da indústria do fumo, ao imperialismo ianque, à opressão dos povos
do terceiro mundo, à questão Palestina e, por último, mas não
somente, ao direito da mulher de dispor do próprio corrrrrpo
(favor pronunciar todos os erres escritos, à maneira carioca de o
fazer).
Portanto, se alguém começou
a ler este texto procurando mais uma confirmação aos ideais pelos
quais deu por bem torcer, pare por aqui. Em matéria de torcida me
atenho ao futebol e, eventualmente, ao carnaval. Não acho sensato
torcer por ideais. Torço por instituições que, de uma maneira
muito mais vaga do que a dos ideais, carregam algum tipo de idéia.
Para mim, está claro que o Palmeiras, o Vasco, a Portela, a seleção
brasileira de futebol, essas coisas todas são de alguma forma uma
idéia, além de serem instituições estabelecidas com nome,
endereço, fardamento e representação legal. Por outro lado, a
solidariedade bolivariana (por exemplo) é um ideal qualquer cuja
aplicação, assim como em todo caso similar (como o apego que no
Bixiga se tem pela Vai-Vai, por exemplo também), tem conseqüências
no mundo dos vivos, com a singular diferença de que não se pode
metê-las, as conseqüências dos ideais, na conta de quem quer que
seja. Se a Vai-Vai vai ao fundo do poço, fica uma saudade. Se for ao
fundo do poço o objetivo idealista de tornar toda a população
mundial magra e boazinha, vão no caminho mundos inteiros.
Normalmente, vão-se com as pessoas que estavam dentro deles.
Não duvidem disso. O
Jabaquara nem mais existe, a URRS também não. O pessoal que torcia
pelo Jabaquara deve ter se arrumado de algum modo. Eram espanhóis,
devem ter corintianizado-se de vez. Espanhol é cabeça dura mesmo.
De todo modo, torcer pelo Jabaquara nunca fez muito mal a ninguém.
Torcer pela URSS deixou muita gente torta até hoje. Isso para não
falar de quem não gostava da idéia. Eu odeio o São Paulo e a coisa
mais terrível que me pode acontecer é passar nervoso. Vocês
precisavam ver o que acontecia com gente que achava a idéia da URSS
passível de umas melhoriazinhas.
Compreendam bem: Deus, eu não
torço por Deus. O que faço é tentar obedecer, dentro dos meus
limitados recursos, umas regras bem básicas que Ele, pessoalmente,
instituiu. Sei que essas regras contêm fundamento em uma idéia, mas
é que os pensamentos do Homem não são os meus pensamentos e,
francamente, duvido que os meus cheguem perto disso um dia. E não
adianta vocês insistirem: não vão conseguir me fazer comportar-me
como torcedor em mais nenhum outro assunto que não aqueles que a
gente só se interessa porque torce. Não a sério.
Esclarecido o fato de que as
pessoas de plástico que fedem em meu título não são aquelas às
quais todos nos habituamos, quais sejam, as pessoas insensíveis aos
belos ideais pelos quais tanta gente torce, quem mais poderiam ser
essas pessoas? Quem estou tentando ofender? Sim, porque não me
iludo: um título desses foi para ofender alguém, colateralmente.
Feder é colateral (há quem feda e preste, e há quem cheire bem e
seja grande filha da puta). Se eu quisesse ofender diretamente quem
quer que fosse, o título seria muito longo.
Ora, caros leitores, estou
falando justamente daquele tipo de gente cuja definição é
impossível, mas cujos membros podemos identificar por conta de um
reflexo condicionado que seus partícipes manifestam toda vez que
conversam conosco. Vamos por partes.
Primeiro: que tipo de gente
não se consegue definir jamais? Aquele composto por elementos tão
instáveis que, se num determinado momento fazem tal tipo parecer
assim, no outro os fazem parecer assado. E por que esse tipo de gente
é assim? Porque não é o tipo de gente disposta a entender de
verdade o que quer que seja, já que acha muito mais gostoso torcer,
pular e dar gritinhos indignados do que se preocupar com coisas como
“entender de verdade”. Sim, eis que voltamos à coisa. E podemos
começar a falar de como identificar figurinhas de plástico, já que
jamais saberemos direito o que elas são.
Segundo: qual é o reflexo
condicionado que revela a composição plástica de nossos
interlocutores? Pergunta retórica, essa (adoro pergunta retórica).
O reflexo condicionado que nos permite a identificação desse
espécime é justamente este: pessoas de plástico o são porque
precisam escolher algo para torcer o tempo todo, desde que assim se
sintam pessoas melhores do que aquelas que elas supõem torcer pela
coisa contrária. Assim, há sempre um ou outro militante
antitabagista que não está realmente muito interessado em saber
algo sobre tabaco. Isso dá um puta trabalho. Ele quer mesmo é se
sentir melhor do que o camarada que fuma e, mais ainda, do aquele
outro que não faz nada para que o camarada que fuma pare de fumar.
Se cruzar com alguém disposto a não só não se meter na vida dos
outros, mas a impedir que outros o façam, aí é que ele percebe as
melhores condições possíveis e imagináveis para cagar na cabeça
de todo o mundo.
O Torcedor Universal pode até
se bater por uma boa causa, mas ele nunca sabe bem o que está
fazendo e sempre acaba transformando a boa causa em merda. Não tenho
a menor dúvida de que tomates plantados sem agrotóxicos são
melhores dos que os plantados com agrotóxicos. Eu sei porque já
comi dos dois, não porque um deles represente um ideal mais ou menos
adequado ao meu visual. Daí a imaginar que seja minimamente
razoável a idéia de se oferecer tomates em escala industrial sem
plantá-los com agrotóxico vai uma distância imensa. Vai a
distância exata entre obter tomates perfeitos para toda a humanidade
e foder diversos plantadores de tomate conforme a necessidade
política de alguém ou de um grupo interessado em foder plantadores
de tomate. Uma vez cumprido o trajeto entre a exigência absurda e a
catástrofe conveniente, você fica sem tomates. Mas faz um belo
papel.
Nossos militantes, o
antitabagista e o comedor de vírus (sim, a maior parte do tomate que
deixamos de comer, o deixamos por conta de um vírus veiculado pela
saliva de uma mosca branca, a Bemisia
argentifolli, para
o qual ainda não temos defesas no país), são figuras plásticas.
Plástico fede. Eu sei porque fui operador de telemarketing e bebi
muita água em squeezy. Qualquer coisa orgânica que se encoste ao
plástico fede. Plástico é uma merda. Comida no tupaware é uma
merda. Coca-Cola em garrafa plástica é uma porcaria nojenta. Uma
coisa que estraga a Coca-Cola pode pôr até sua alma a perder.
Pessoas que argumentam contra a Coca-Cola ou são dentistas, ou são
de plástico, ou ambos. Em todos os casos, fedem. Isso mesmo.
Dentistas vivem cercados por plástico e acabam fedendo como comida
de tupaware. Portanto, fedem de qualquer jeito.
Sujeitos que têm opiniões
cuja origem eles não querem conhecer plastificam-se e fedem. Quase
todo jornalista esportivo fede, porque passa o ano todo repetindo
coisas sem atinar com o sentido do que diz. É um berreiro só por
organização, modernidade, planejamento e profissionalismo. No dia
em que as redações esportivas voltarem a contar com gente
alfabetizada, talvez elas mesmas consigam planejar algo para se
organizarem de maneira profissional. Pena que isso não vai ser
moderno, porque antigamente é que era assim. O sujeito sabia que
profissionalismo era aprender a escrever antes de começar a
escrever, coisa muito diferente de cumprir horários para matar tempo
enquanto se torce por uma idéia. Ativistas, em geral, fedem. São de
plástico também. Ativistas camuflados fedem mais ainda. Ativistas
involuntários fedem mais do que certas partes íntimas de John
Holmes e Ginger Lynn, após um dia de intensa labuta. Você tenta
falar com o Ativista Involuntário e ele não sabe do que está
falando, mas acha gostoso que, de alguma maneira, você não possa
falar algo que sabe. Mesmo tendo opinião para tudo o tempo todo, ele
jamais volta atrás em nada.
A Pessoa de Plástico nunca
erra, porque ela é portadora de uma idéia para torcer e, quando a
gente torce, quer ganhar de qualquer jeito. Roubado é até mais
gostoso. Com o tempo, você se acostuma com o mau-cheiro e nem nota
mais a coisa.
(*) André Falavigna é
escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo
futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal no qual lança,
periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas
publicações eletrônicas.
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