Coroada de Rosas
* Por
Gabriela Cuzzuol
(Ou uma Crônica sobre o
significado das palavras)
Certas palavras deveriam
definitivamente ser reinventadas. Preconceito, por exemplo, deveria
se chamar “mavontade”. Assim, junto. Porque quando se “predispõe
a não gostar”, o prefixo vem grudado, absolutamente perto da
impossibilidade de desaparecer. Outro exemplo que poderia funcionar
bem seria o “quebrei a cara” pelo substantivo “surpresa”.
Jornalisticamente falando, funcionaria.
Experimentei os dois, com
todos os seus pormenores, na abertura de uma exposição na Casa das
Rosas, no sábado dia primeiro. Motivos vários: o cansaço do
trabalho do dia anterior, a descrença na decoração como arte, a
falta de vontade de fazer uma pauta com grandes possibilidades de
“cair”, e a simples ojeriza a decoração... Mentira! Mentira
pura e total. Mentira “clara”, ou melhor, escura, porque
tecnicamente, mentira é sempre escura.
Está aí outro termo que
poderia ser substituído: Mentira. Talvez trocar por “falta de
coragem de assumir”. Ou quem sabe “capa protetora”, esse último
termo, garimpado de uma pesquisa nada científica de acordo com uma
pesquisa nada científica, feita com cinco amigas minhas, adicionado
de “às vezes”, elas reafirmam, quase nunca. Trocar mentira por
“escudo” poderia ser uma. Ou não. Moralmente impensável,
jornalisticamente inaceitável.
Pois é, o fato é que, apesar
de todos os verdadeiros motivos acima, o que me fazia não querer ir
conferir a “tal da CAD”, era que há cerca de dois meses, por
causa dela a minha casa estava fechada. Minha casa sim, porque após
mais de um ano de risos, amigos, estórias, poesia e inúmeras
descobertas, virou minha casa.
Uma vez eu ouvi que casa é o
lugar onde plantamos nossos sonhos e esperanças. Alguns dos meus
estão plantados ali, em meio àquelas rosas. Sonhos que eu nem sabia
que tinha e, o melhor, não eram apenas meus. Por ali eu vi o
“nascimento”, a descoberta de grandes artistas, coisas como a
senhora que não gostava de nada e descobriu um motivo brilhante para
“dar uma volta num sábado à tarde”; a virtuose despretensiosa
que não pensava em publicar, cuja obra nunca sairia dos limites
daqueles portões. Vi o engenheiro cujos olhos brilhavam ao vestir-se
em versos; o professor que se fez artista; a periferia que em meio
àquele hall, se mostrava em pé de igualdade, como imprensa nenhuma
havia tido a capacidade de fazer. Ali eu percebi o reduto dos “res”:
redescoberta, reinvenção, renascimento, por vezes recomeço.
Fora ali também, depois de
anos de jornalismo musical, confirmei que a ardência da fogueira das
vaidades é imutável, e que, onde houver arte, estará lá. E que
ainda, como diz um poeta-amigo, eles, “os nobres eleitos”,
suportam apenas nível constante”*. Há naquelas paredes, uma
verdade que só decifra, quem passou parte da vida ali.
Aí, “vem a tal CAD” e a
fecha, por meses! Motivo suficiente para não querer ir, me recusar a
ver, desenvolver paúra pelo duo “Rosas-Decor”! Ah... Salvamento
graças a outro substantivo: gratidão! A este, somou-se a
curiosidade clássica de repórter e lá estava eu: cansada e cheia
do que fazer, na abertura da “tal expo”.
Troca semântica número 2: a
expressão coloquial “quebrei a cara”, por “surpresa”. Ou
melhor, as duas juntas, porque de fato, foi assim que aconteceu. E
não é que “funcionou”? Sim, havia poesia nos cômodos, em suas
várias formas: visual, dançante, ao ar livre, “recitada” pelo
computador, escrita nas paredes. Menos do que eu queria, mais do que
esperava, pouco viva talvez, presente, de fato. Eles todos. Os mesmos
que, de forma abstrata, fizeram de lá sua morada. O Drummond, o
Bandeira; os “Andrade”, o Vinícius, o Haroldo, o Augusto, o
Blake e o Camões, ah o Camões... estavam todos lá. No concretismo
de palavras grafadas,sutileza das cores, detalhes, eles estavam
presentes.
Em todo esse tempo de “Casa”,
foi o encontro com eles, em sua essência e poesia, capaz de fazer
tantas vidas alterarem seus rumos artísticos (ou até despertar para
algum), ou em outro verbo, despertarem. Eles também fizeram com que
eu vencesse a resistência, me despisse de significados errados (como
diz o Veríssimo), fosse para casa rápido e ligasse para o editor,
insistindo na pauta.
Sim, ainda era a minha casa.
Minha casa “coroada de rosas, coroada de verdade, de rosas...”**
Acho que merecia mesmo uma boa visita, pois como diz o nosso já
citado Veríssimo, algumas palavras têm o significado errado.
Falácia, essa toda aqui, é uma delas...
*Carlos Savasini em “Caos”.
** Fernando Pessoa em
“Coroai-me de Rosas”
* Gabriela Cuzzuol é
jornalista, professora de literatura e pós-graduanda em Jornalismo
Cultural pela PUC-SP.
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