quarta-feira, 20 de setembro de 2017

A primeira vez

* Por Mara Narciso
 
Nas viagens, a ida me parece mais demorada do que a volta, geralmente mais rápida e sem apreensões. Desbravar caminhos, descobrir coisas e pessoas é tão emocionante quanto ameaçador. A cada curva, (de caminhos ou de pessoas) uma descoberta, uma emoção, um susto, e até perda do fôlego. Quantas vezes abri os olhos e a boca diante de uma maravilha? E a vida continua me mostrando bons lugares e ótimas pessoas.
 
No ramo do desbravamento, nos finais de ano, Roberto Carlos lançava seu infalível LP – Long-Play, uma bolacha de vinil com 12 músicas, ou seja, vinte minutos de som de cada lado. Menina ainda, contando moedas, meu desejo era ter todo o montante para adquirir o disco. Poucas vezes consegui. Juntava o dinheiro com dificuldade, pois para mim era uma fortuna. Entrava dezembro e eu me agoniava na espera, até saber que o disco já tocava na Disco Brasa.
 
Pura emoção, abraçada ao presente, chegava a casa para começar a exploração: olhar, cheirar, desembalar, manusear carinhosamente e ouvir o tesouro. Ainda me chegam às narinas os cheiros de cola e dos produtos da confecção do disco. Eu era uma menina pobre e apaixonada. Havia na casa uma radiola, quase sempre quebrada, dentro de uma caixa de madeira em dois tons. Era automática, algo glorioso e tinha um som potente, que retumbava na minha magra caixa torácica. Punha o LP no prato, acionava o botão, o braço se levantava, deslocava até a primeira ranhura, fazia pontaria e caia suavemente, com sua delicada agulha sobre o início da primeira música. Então a viagem começava.
 
Depois, perscrutava cada centímetro da capa, da frente e do verso, além do selo do disco. Os nomes dos produtores, linha por linha, cada autor da letra e melodia. Admirava tudo naquele produto caprichado, projetado em cada detalhe. Coisas que me marcavam, se eternizando nos meus cinco sentidos, seja a luz de dezembro, sejam os chiados da máquina primitiva, escutados centenas de vezes.
 
A aventura me despertava encanto e prazer, pois a primeira audição era uma experiência única, da introdução ao fim, com a espera da próxima atração. Gostava de tudo. Logo decorava a sequência e cantava junto. E se a música caísse em cheio no meu gosto, como algo magnífico, era ouvir até “furar o disco”. Algumas faixas ficavam de cor mais clara de tanta repetição. Milena, minha mãe, afirmava que se Roberto Carlos gravasse um uivo eu aplaudiria. De fato, naquele tempo, tudo que ele gravava, automaticamente ganhava qualidade, pelo dom transformador que tinha.
 
Depois das seis músicas de um lado, era preciso virar o disco, refazendo toda a operação manual de acionar o botão do braço, e esperar iniciar o outro. De um modo geral as melhores músicas ocupavam o lado A. As do lado B tinham qualidade mediana. Daí se dizia: “este material mal dá para encher o lado B do disco”, para designar música ruim. E também, para dizer, melancolicamente, que a vida já estava no fim: “está tocando o final do lado B”.
 
Comparando aquela fase com hoje, tivemos uma evolução descomunal na armazenagem de música. Digitalizada em MP3, um pendrive de 16 gigabytes armazena perto de cinco mil músicas ou 420 LP. Quem iria se interessar por isso? A oferta cria a demanda. Até devido à imensa extensão, que dificulta decorar a sequência, viajar por ele traz emoções semelhantes aos outros tempos, dos recursos escassos, e que agora me chegam em abundância. Valorizo tanto quanto antes. Ligo o carro, o pendrive começa, sem eu acionar nada, o som invade meu corpo, a música vai à frente abrindo o caminho e eu a sigo, flutuando em sua melodia e nos sentimentos que me transbordam.

* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”


2 comentários:

  1. Apesar dos serviços de streaming grátis por aí, com milhões de músicas, continuo com meus mais de 500 vinis e com meu toca-discos. Tomando espaço e sem uso, porém ainda comigo. Abraços, Mara. Parabéns pela nostálgica lavra.

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  2. Não tenho ouvido os discos, mas andei horrores para consertar meu aparelho de som de 1996.Consegui. Obrigada, Marcelo, pela atenção da leitura e do comentário.

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