segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Sem despedidas

As amizades (tenho escrito isso com grande freqüência) são privilégio e bênção, embora aconteçam de forma natural, não raro, até, à nossa revelia. Mas é possível sermos amigos de alguém a quem nunca vimos, com quem jamais conversamos, e ainda assim esteja sempre presente ao nosso lado, se manifestando nos momentos que mais precisemos (ou simplesmente queiramos) e a respeito de quem conheçamos as mais triviais informações biográficas? Minha resposta é: sim!

Mas como?”, perguntará, intrigado, o leitor, não vendo como isso seja possível. Asseguro, todavia, que isso não só está no terreno das possibilidades, mas ocorre com maior freqüência do que você possa supor. É o caso da minha amizade espiritual com dezenas de milhares de escritores. A imensa maioria deles, inclusive, morreu muitos anos antes do meu nascimento, alguns até séculos, quando não milênios (como Homero, Virgílio, Píndaro e Horácio, por exemplo) e, no entanto, estão comigo constantemente.

Devo-lhes não apenas minha forma de encarar e de fazer literatura, mas de entender o mundo, as pessoas, os sofrimentos e alegrias, a felicidade e a dor, enfim, a vida. Não se trata de nenhum exercício de mediunidade, óbvio. “Converso” com eles mediante as ideias, conceitos, emoções e pensamentos que eles tiveram e, generosamente registraram e legaram à posteridade. Trata-se, na verdade, não de diálogos, mas de ilustrativos monólogos, em que somente esses meus mestres, meus gurus, meus “amigos” espirituais “falam”.

Nossos encontros cotidianos são sempre informais, sem cerimônias e nem salamaleques, como devem ser os contatos com pessoas que privem da nossa intimidade pelas vias sagradas da amizade. Não visto trajes especiais, por exemplo, para essas reuniões. Não raro elas ocorrem comigo vestindo confortável roupa caseira (um pijama, por exemplo), ou, dependendo da estação do ano, até mesmo uma bermuda ou sumária sunga. Eles nunca repararam nesse aspecto.

Ademais, esses diletos amigos jamais assumem ares pedantes e nem polarizam a palavra. “Falam”, apenas, quando quero que falem e abordam, via de regra, os temas específicos que quero que abordem. E nunca me falharam. Sempre que quero saber de alguma história instigante, convoco alguns deles, que podem ser, por exemplo, Fedor Dostoievski, ou Leon Tolstoi, ou Máximo Gorki, ou Gogol, ou Puchkin, quando não Honoré Balzac, Victor Hugo, Eça de Queiroz, Guy de Maupassant, Mário Vargas Llosa, Gabriel Garcia Márquez, José Saramago ou Edgar Alan Poe. São tantos! E tão versáteis! E tão criativos!

O amigo ao qual mais recorro nessas ocasiões, todavia, é o “Bruxo do Cosme Velho”, Machado de Assis, que sempre tem um personagem marcante a me apresentar, como Capitu, Bentinho, Escobar, Dom Casmurro, Brás Cubas, Helena e tantos e tantos outros, que me marcam com seus dramas, aventuras e atitudes. Isso sem falar dos que ele manipula à perfeição, como perito títere de marionetes, na centena de contos seus que leio, releio, treleio, esmiúço e analiso, já que este é o gênero da minha predileção e, portanto, minha especialidade literária.

Recorro, também, com freqüência, a filósofos e ensaístas, como Henry David Thoreau, Montaigne, Ralph Waldo Emerson, Francis Bacon, Blaisé Pascal, Octávio Paz (do qual me delicio, de lambuja, com seus mágicos poemas), Bertrand Russell e tantos e tantos e tantos outros, que não menciono nominalmente para não maçar você, paciente e fiel leitor.

Todavia, meus contatos mais freqüentes são com poetas. São, por exemplo, com Fernando Pessoa, meu heteronímico e notável guru. São com Mário de Sá Carneiro, com Florbela Espanca, com Johann Wolfgang Goethe, com Lamartine, com Shelley, com Rilke, com T. S. Elliot, com Walt Whitman, com Gabriela Mistral, com Pablo Neruda.

Mas que os brasileiros não fiquem com ciúmes (nunca ficam). Estou, sempre, me encontrando (com devoção e deleite) com Cecília Meirelles, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, Vinícius de Moraes, Ledo Ivo, Guilherme de Almeida, João Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Alphonsus de Guimaraens, Castro Alves, Olavo Bilac, Adélia Prado, Talis Andrade, Luís Augusto Cassas, Fabiana Bórgia, Suzana Vargas, Paulo Mendes Campos, Lindolfo Bell, Paulo Bonfim, Corrêa Junior, Patativa do Assaré e tantos, e tantos, e tantos outros. Esses encontros são orgias de emoção e sensibilidade.

Jorge Luís Borges escreveu, se não me falha a memória em sua “História da eternidade”: “Homero e eu separamo-nos nas portas de Tanger. Creio que não nos despedimos”. Posso dizer que me separo, diariamente, desses diletos amigos espirituais nos mais diversos locais: no meu quarto, no meu gabinete de trabalho, nos separávamos, tempos atrás, na redação do jornal em que eu era editor, trocamos um até logo na minha biblioteca, na sala de espera do dentista, etc. Nunca, todavia, me despeço. E não é por falta de educação da minha parte. É porque lhes digo mero e trivial “até breve”, na certeza de nos vermos no próximo dia.

A propósito, deixei Jorge Luís Borges para o fim, mas não por tê-lo em menor conta, mas exatamente por motivo oposto. Todos que me conhecem, pessoalmente ou por leitura dos meus textos, sabem da veneração que tenho por esse fantástico escritor argentino. Separo-me dele, todos os dias, não nas portas de Tanger (é possível que a separação ocorra, um dia, até nesse local), mas na soleira do meu quarto, da minha biblioteca, da minha sala... Contudo, como ele afirma ter feito em relação a Homero, “creio que nunca nos despedimos...” Jamais vamos nos despedir!

Boa leitura!

O Editor.



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