terça-feira, 15 de agosto de 2017

“Olhos de ressaca”


* Por Evelyne Furtado


"Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me".
Machado de Assis, Dom Casmurro.


O Bruxo do Cosme Velho, a mim nunca foi antipático. Não me sentia obrigada a ler Machado de Assis. Lia Machado com prazer, embora na adolescência não o compreendesse como o compreendi nas releituras adiante. Ainda assim, passeei com seus personagens nas Ruas do Ouvidor, na de Matacavalos e no Engenho Novo. Freqüentei seus saraus. Vivi os amores pueris. Encantos e desencantos de um passado historicamente recente, porém de costumes remotos.


Os contos li adulta, e tenho como prediletos Missa do Galo, sutil sedução entre uma mulher mais velha e seu jovem hóspede; Pai Contra Mãe, que me impressionou muito pela crueza do narrador abordando uma das faces da escravidão e O Homem Célebre, que retrata com profundidade a ambição humana de querermos ser mais do que somos. Uma reflexão à humildade.


Furto-me da clássica divisão literária entre o Machado romântico e o realista. Não tenho competência para tanto, apenas divago por Dom Casmurro, meu romance preferido.


Bentinho, o menino bom que foi criado para ser padre, deixa o seminário e se casa com a amiga de infância Capitu, personagem enigmática, olhada com desconfiança pelo narrador desde criança.


A falta de confiança transforma-se em ciúme, talvez devido à própria admiração de Bentinho pelo seu melhor amigo Escobar a ponto do marido repudiar mulher e filho, em razão do menino nascido do casamento assemelhar-se com Ezequiel Escobar.


Há discussões até hoje sobre a veracidade da traição. Uma intenção do genial autor, por certo. Em minha opinião a infidelidade de Capitolina é fruto do delírio e da insegurança de Bentinho, sendo o ex-seminarista inflamado por José Dias, o antigo agregado da família, que definiu os olhos da Capitu adolescente como “olhos de cigana oblíqua e dissimulada".
 

Entre Emma Bovary, de Flaubert, Luisa de Eça de Queiroz e Capitu de Machado de Assis, as três com algumas características semelhantes, a mim a mais interessante é Capitu, pelas suas virtudes, pela humanidade da personagem e pela dúvida nunca desvendada.


Voltar ao nosso maior escritor, no centenário de sua morte enriqueceu-me. Não pretendi um estudo acadêmico. Também não tratei apenas de homenageá-lo. Mergulhei nos sentimentos de paixão, do medo e da dor tão comum quando nos sentimos atraídos por alguém, sensações descritas com suprema maestria por Machado.


Agora falo de mim para mim: quem dera pudesse olhar com confiança e candura, pois é o que me falta ao contemplar seu olhar misterioso, tímido e arrebatador. Já me senti como Bentinho, arrastada pela força do seu olhar e quase me deixei ir de vez para o fundo do seu mar. Salva, gostaria eu de te salvar. 



* Poetisa, cronista e psicóloga de Natal/RN.

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