quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Flauta sem boca à procura de música


* Por Marco Vasques


ecoa na voz violada a lâmina da guilhotina
e o silêncio do cadafalso extrai as provisões da língua
a palavra escoa da boca como flauta sem música
pois a última nota jaz na corda que estrangula o pescoço
na casa em que nasci tudo se doa sem cerimônia
da carne em nevralgia ao beijo na mão do carrasco
morde o verbo e trinca a sorte no próprio corpo
para não entregar o sacerdócio do útero a outra casa
para não comer o farnel das dores em outra mesa
sobretudo para não morder a escuridão antes do tempo
e erguer um sanatório na tessitura da pele


agarra com os dentes a música durante o sono
porque a telegrafia dos sons dorme no antigo
retrato familiar onde o mutismo irônico da face
revela o mutuário parentesco em moratória
e no sorriso ancestral mais uma música perdida
porque o silêncio pronuncia a afania da fraternidade


na minha cama o desejo messiânico sufoca
a passagem do dia e o reinado dos lençóis
na isquemia absoluta de qualquer hedonismo
reduz a imagem da valsa dos corpos
à paralisia do timbre de uma voz que não ouço
de um corpo congelado que não reencontro
de um sorriso sujo desenhado no algodão que toca a carne
de uma ilusão pregada nos olhos que não vejo
de um braço amputado que se debate numa tela de
Modigliani
[e que nunca foi pintado


na minha carne o desejo messiânico sufoca
a passagem dos anos e no vitral primitivo das horas
ecoa na voz violada a lâmina da guilhotina
e o silêncio do cadafalso extrai as provisões da língua
a palavra escoa da boca como flauta sem música
pois a última nota jaz na corda que estrangula o pescoço


e tudo que nos resta ao final do dia são os olhares acusativos
daquelas antigas fotografias amarelecidas num álbum
qualquer


e o silêncio da numerologia estampada nos túmulos
a soarem nos nossos ouvidos
flauta sem boca à procura de música.
 
* Poeta e crítico de poesia. Bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Faz mestrado em Filosofia da Linguagem. Autor de Elegias Urbanas (Poemas, 2005, Bem-te-vi, Rio de Janeiro), Diálogos com a literatura brasileira – volume I (entrevistas, 2004, EdUFSC/Movimento, SC/RS), Diálogos com a literatura brasileira – volume II (entrevistas, 2007, EdUFSC/Movimento, SC/RS) e Harmonias do Inferno (contos, 2005, edição do autor). Tem no preloFlauta sem Boca (poemas) e trabalha no Diálogos com a literatura brasileira - volume III. Nasceu em Estância Velha, 1975, vive em Florianópolis, mas é de Imbituba, onde passou a infância.



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