sábado, 12 de agosto de 2017

Entrar na pele do outro



* Por Risomar Fasanaro


Minha amiga Dina me envia uma linda mensagem em que declara que precisa ler para sentir que “tudo parece inteiro”. Diz que precisa “entrar na vida do outro, nas palavras do outro, viver com e pelo outro, distanciar-se de si mesma, da sua trajetória (sempre inacabada), seguir o caminho do outro...”.

Mergulho em suas palavras e me pergunto: será que a maioria das pessoas não é assim? Não sei se mais feliz, mas acho maravilhoso embrenhar-me nas matas com Riobaldo e Diadorim; quando sinto a terra do sertão mineiro, ouço a conversa dos dois, percebo a tentativa inútil de esconder o amor que um sente pelo outro. Como sou feliz quando sinto o cheiro do mato, o roçar dos galhos nos meus braços, ouço o canto dos pássaros, vivo a paixão que se enreda nas entrelinhas dos diálogos, quando me detenho no olhar de Riobaldo pousado em Diadorim, e sinto as emoções que eles sentem.

Faço isso com tamanha verdade, que lendo também não sou mais eu. Quantas vezes, de salto alto sou Sinhá Vitória, tropeçando, sem andar direito nessa cidade grande... Quantas vezes não me oprime o peito à espera da chuva, à minha impotência diante da ausência de caminhos. Busca tão difícil quanto a dela diante da seca?

E quantas vezes sou Macabéa, um dinossauro na Avenida Paulista, chegando do Recife com aquela pureza, aquela ingenuidade, aquele desarmamento diante da vida. Frequentemente Precisando tomar um analgésico, para ver se diminui a dor de viver.

 É... viver é difícil, talvez por isso a gente se refugie na pele do outro, ainda que esse outro muitas vezes sofra tanto ou mais do que nós...

Macabéa, por exemplo, me comove até as lágrimas. Quando releio “A Hora da Estrela” sinto vontade de sentar em um banco de alguma praça e colocá-la no colo, de embalar Macabéa, cantando “Terezinha” do Chico Buarque, até que ela durma.

Por causa desse mergulho, já tentei três vezes ler “Crime e Castigo” de Dostoievski, “Os Subterrâneos da Liberdade” de Jorge Amado e “Memórias do Cárcere” de Graciliano Ramos. Fico acanhada quando me perguntam o que acho dessas obras. Nada, não acho nada porque nunca consegui passar da página vinte. Isso é grave? Sim, para uma professora de literatura é mais do que grave, é gravíssimo, mas que fazer? Não consigo...

Relembro o susto que tomei no dia em que estava eu “posta em sossego” lendo “Grande Sertão: veredas” de Guimarães Rosa. De repente Diadorim leva um tiro e Riobaldo lhe abre a camisa para tentar salvá-la e vê os seios dela, descobre que Diadorim é uma mulher. Meu susto foi tamanho que quase tive um peripaque, e a tristeza, a dor que senti foi tão grande que poderia compará-la próxima a de Riobaldo.

Parto para a poesia e releio “O Caso do Vestido” de Drummond. Fico revoltada com a mansidão daquela mulher a viver a solidão desamados, a guardar o vestido da amante do marido pendurado atrás da porta como a refazer todos os dias o caminho daquele que a traiu.

Cansada daquela resignação, releio “O Rio” de João Cabral. Quanta seca, quanta fome, quanta miséria. É... parece que a literatura, com poucas exceções, é parente do jornalismo: se faz com notícia ruim. E que contradição: poucas coisas na vida nos proporcionam tamanho prazer.

Nunca tomei LSD, nem cheirei cocaína, mas duvido que alguma droga proporcione o maravilhamento que um bom livro nos traz. Duvido.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora,  autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.



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