quarta-feira, 5 de julho de 2017

No tempo da cegonha


* Por Urda Alice Klueger


Numa manhã de março de 1956, eu acordei com o meu mundo virado de cabeça para baixo. Até aquele dia, eu não observara nada diferente na minha mãe, mas naquela manhã ela me pareceu enorme dentro do seu vestido de seda preta, estampada de ramalhetes de flores coloridas. Lembro que fazia sol, e, decerto, também fazia calor, mas isso me passou despercebido, diante das coisas estranhas que estavam acontecendo. Esperava-se um táxi para levá-la ao hospital, onde a ‘cegonha’ iria lhe entregar uma criança. Até acordar, eu não sabia nada a respeito daquilo, e acordar com todo aquele alvoroço em casa e observar que minha mãe parecia ter inflado foi bastante chocante.

O táxi (que a gente chamava de ‘carro de praça’) chegou e levou minha mãe; ficamos, eu e minha irmã mais velha, na vizinha Dona Cecília, aguardando que meu pai voltasse. Eu me encantava com a casa da Dona Cecília, que tinha sótão e um oratório de Nossa Senhora lá em cima, mas naquele dia não parecia tão interessante assim ficar à janela do sótão esperando meu pai, depois de toda aquela confusão na minha vida.

Meu pai voltou, afinal. Minha irmã iria ficar na casa da Dona Cecília até minha mãe voltar do hospital, mas eu fui na garupa da bicicleta do meu pai até o serviço dele – mais tarde ele me levaria para a casa da minha madrinha.

Não lembro dos meus sentimentos naquelas horas, mas decerto que eram péssimos, pois, no serviço do meu pai, pus-me a chorar inconsolavelmente. Meu pai trabalhava num clube chique de Blumenau, com muitos espaços e jardins, e lá também estavam duas meninas que eram filhas ou netas, não sei, do ecônomo do clube. Eram meninas maiores que eu, deviam ter já uns dez anos, e, enquanto meu pai trabalhava, elas me levaram para passear e tentaram me consolar. Entre outras coisas, me perguntaram se eu havia botado açúcar na janela, para que a cegonha o comesse e trouxesse um bebê bem bonito para nós. Eu nunca havia ouvido falar naquilo, e saber que havia deixado de cumprir um dever tão importante para com a cegonha me deixou apavorada. Chorei tanto, mas tanto, então, de medo que a ‘cegonha’ não trouxesse o bebê porque eu não havia pensando no açúcar, que as meninas não tiveram outro jeito: foram comigo até a cozinha do clube, encheram uma pesada xícara com açúcar e a colocaram na janela de lá. Aquilo me consolou um pouco, mas ficou uma dúvida: será que a cegonha saberia que aquele açúcar ali tinha a ver com o bebê que deveria ir para a minha casa? Era uma pergunta muito séria, e a angústia permaneceu. Afinal, fazia poucos dias que eu completara quatro anos.

Hoje as coisas estão bem mais fáceis para as crianças que estão à espera de irmãozinhos. Estou acompanhando o caso da minha amiga Sônia e seu filhinho Bruno. Desde que Bruno tinha dois anos, que a mãe começou a chamar sua atenção para as barrigas das mulheres grávidas, explicando-lhe que ali havia um bebê. Bruno nunca ouvir falar em cegonha; sempre soube como os bebês vinham para este mundo. Bruno, agora, tem cinco anos, e sua mãe espera um novo bebê. Sem problemas, sem traumas, ele está curtindo a gravidez da mãe e a espera do irmãozinho com toda a serenidade. Nunca irá acordar, numa manhã, com a vida de cabeça para baixo porque a mãe irá para um lugar desconhecido, onde a ‘cegonha’ lhe entregará um bebê, que só será bonito se ele colocar açúcar na janela. Nunca sofrerá a angústia e o medo de não ter cumprido com uma obrigação para com a cegonha. Saberá o tempo todo que um irmãozinho irá chegar, e acompanhará seu desenvolvimento através das fotos que se obtém quando as mães fazem a ultrassonografia. Em suma, a chegada de um novo bebê causará a Bruno, no máximo, um pouco de ciúmes por ter ele perdido o colo.

Acho que as crianças têm menos problemas, hoje. Eu gosto das fantasias e das lendas, mas vivi na pele a angústia de não saber que tinha que colocar açúcar na janela para a cegonha nos trazer um bebê bonito. Foi um susto descobrir, de repente, que minha mãe tinha ficado enorme e que iria nos deixar por alguns dias, coisa que nunca acontecera. É mais fácil para uma criança esperar um bebê junto com a mãe, e não levar os sustos que vivi um dia.

E, só para completar, esclareço que a falta de açúcar para a cegonha não chegou a causar problemas: veio para nós, naquela ocasião, minha irmã Margaret, toda bonitinha, sem nenhum problema por conta da falta de açúcar na janela!

Blumenau, 10 de novembro de 1996.


* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).



Nenhum comentário:

Postar um comentário