quarta-feira, 5 de julho de 2017

Memória e Linguagem


* Por Emanuel Medeiros Vieira


Quero falar da memória não como algo mecânico, mas como base de toda a identidade.

Memória como instrumento de justiça e de misericórdia.

Não por acaso, na mitologia grega, Mnemosina, a memória, é a mãe das Musas, ou seja, de todas as artes, do que dá forma e sentido à vida.

Sim, ela protege a vida do nada e do esquecimento.

A literatura não deixa de ser (também) um instrumento de transfiguração de um momento (eternizar a memória).

Uma busca de perenizar o instante para convertê-lo em sempre.

O ato da lembrança é ao mesmo tempo caridade e justiça para as vítimas do mal e do esquecimento.

Muitas vezes, indivíduos e povos desapareceram no silêncio e na escuridão.

Muitos devem se lembrar das ditaduras que, apagando as fotografias dos banidos querem, em verdade, apagar a sua memória.

A memória é resistência a um tipo de violência: àquela infligida às vítimas do esquecimento.

A memória é o fundamento de toda identidade, individual e coletiva.

Guardiã e testemunha, a memória é também garantia da liberdade.

A linguagem é edificada para a construção dos textos que querem eternizar nossa brevidade, a nossa finitude.

Como observa a filósofa e historiadora, Regina Schöpke, “quanto mais inconsciente ou subliminar é a linguagem, mais fortemente ela age sobre nós, mais ela nos domina e nos dirige”.

Os filósofos e filólogos sabem disso. Estes últimos, veem nela não apenas uma ferramenta da razão para dar conta do mundo, mas, sobretudo, uma segunda natureza.

“Algo que, de certa forma, produz o mundo, e não apenas o representa”, como observa a autora citada. Os gregos já enfrentavam a questão.

Nietzsche – que além de filósofo era também filólogo – chamava esse universo da linguagem de “duplo afastamento do real”, de “segunda metáfora”.

Porque aí os homens lidavam com conceitos e não apenas com o mundo em si.

A linguagem pode ser instrumento de dominação, estimulando um preconceito racial, como fizeram os nazistas, alimentando o fanatismo e o preconceito, gerando um horror como raramente (ou nunca) se viu na História.

Todo sistema com ambições totalitárias, como detectou a pensadora, tem necessidade de produzir um discurso, uma mitologia e palavras de ordem.

É um exercício mental doloroso, mas assim a gente pode entender como uma cultura que produziu tanta beleza com Goethe, Beethoven, Nietzsche, Hegel, Wagner e outros, tenha mergulhado, com o nazismo, na mais profunda irracionalidade, onde o Mal apareceu com toda a sua força, ou melhor, em toda a sua plenitude.

Tento meditar sobre esses assuntos, entre outras razões, porque a falta do estudo da filosofia para quem tem menos de 60 anos, criou um tremendo vácuo cultural.

Fundou-se o universo utilitário, da posse imediata. Só vale o que tem valor contábil.

Faço minha a proclamação de Michel Foucault: “Não se apaixone pelo poder”.


* Romancista, contista, novelista e poeta catarinense, residente em Brasília, autor de livros como “Olhos azuis – ao sul do efêmero”, “Cerrado desterro”, “Meus mortos caminham comigo nos domingos de verão”, “Metônia” e “O homem que não amava simpósios”, entre outros.


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