Geladeira Engarrafada
* Por Dahiana Araújo
Carros por todos os lados,
faróis que piscam, mãos com gestos obscenos que saltam vultosas das
janelas enfrentando quem ousou tocar a buzina. Uma fila sem fim de
carros que se perde na imensidão do nosso olhar, conseguindo se
perder também na audácia do nosso acreditar. Difícil imaginar algo
tão grande, uma violência aos nossos olhos. Uma violência aos
nossos cinco sentidos. O que mais incomoda, além da majestade do
desequilíbrio estrutural das vias, é o desequilíbrio emocional –
e que não deixa de ser estrutural – de cada pedacinho de gente que
parece ter sido engolida pelo carro, e a digestão cabia agora ao
arrastar de cada significativo movimento de um carro. Tudo isso é
uma verdadeira gastrite: gastrite mecânica, seria o caso.
Parece falta lucidez, no meio
dessa confusão que o homem pós-moderno tropeçou, imaginar a minha
geladeira. Meu vidro fumê impede grande parte da passagem da luz dos
faróis dos outros carros, mas ainda consigo ver a bagunça, a
confusão aleatória, e quase que infantil, dessas parafernálias
mecânicas. Minha geladeira... E se tivesse um semáforo do lado
esquerdo?! È tanta vasilha colorida, garrafas que não se ajustam à
porta, tem copo com leite de soja, tem caixas de leite... o pão de
milho que sobrou do café da manhã... E uma garrafa, e outra, e
outra... O apito do guarda assusta qualquer vivente que uma dessas
parafernálias mecânicas engoliu. Não dá pra controlar o que entra
e sai daquela geladeira, tem muita gente entrando e saindo de casa
também, a toda hora. No meio de tanto compromisso quem vai lembrar
do arroz de domingo que ficou na vasilhinha azul da tuperware?
Hoje ainda é quarta-feira, ainda tem gastrite mecânica sexta e
sábado.
O domingo finalmente chegou, a
desordem das parafernálias mecânicas não me insultam, não no
trânsito, porque quando cheguei em casa e lancei a chave do carro em
qualquer lugar, o mais longe possível de mim, eu precisei ir à
geladeira pegar um copo de água. Desisti no meio do caminho. É
melhor esfriar a cabeça primeiro pra, só depois, enfiar minha
postura no caldeirão de lavas geladas que se tornou minha geladeira.
Encontrar sentido no meio de coisas sem o menor sentido é o dom das
pessoas criativas, acho que é por isso que a minha geladeira não
assume uma forma normal. Acredito que as geladeiras das outras
pessoas por aí estão sempre nos conformes.
São apenas 7 dias sem fazer
uma faxina básica na minha geladeira e ela fica assim! Eu passo sete
dias sem beijar na boca, mais sete dias sem ler um livro, mais sete
dias sem ver meu pai, mais sete dias sem comer chocolate, passo sete
dias sem fazer amor...só aqui já se foram 35 dias e eu continuo de
pé. É, a geladeira também. Estou começando a acreditar que o que
desmorona é o que fica por dentro, de mim e da geladeira. É um caos
interno. Compreendi!
Hoje vou dar um jeito nessa
geladeira... mas só depois de dar um jeito em mim.
* Jornalista.
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