segunda-feira, 3 de julho de 2017

Geladeira Engarrafada


* Por Dahiana Araújo



Carros por todos os lados, faróis que piscam, mãos com gestos obscenos que saltam vultosas das janelas enfrentando quem ousou tocar a buzina. Uma fila sem fim de carros que se perde na imensidão do nosso olhar, conseguindo se perder também na audácia do nosso acreditar. Difícil imaginar algo tão grande, uma violência aos nossos olhos. Uma violência aos nossos cinco sentidos. O que mais incomoda, além da majestade do desequilíbrio estrutural das vias, é o desequilíbrio emocional – e que não deixa de ser estrutural – de cada pedacinho de gente que parece ter sido engolida pelo carro, e a digestão cabia agora ao arrastar de cada significativo movimento de um carro. Tudo isso é uma verdadeira gastrite: gastrite mecânica, seria o caso.

Parece falta lucidez, no meio dessa confusão que o homem pós-moderno tropeçou, imaginar a minha geladeira. Meu vidro fumê impede grande parte da passagem da luz dos faróis dos outros carros, mas ainda consigo ver a bagunça, a confusão aleatória, e quase que infantil, dessas parafernálias mecânicas. Minha geladeira... E se tivesse um semáforo do lado esquerdo?! È tanta vasilha colorida, garrafas que não se ajustam à porta, tem copo com leite de soja, tem caixas de leite... o pão de milho que sobrou do café da manhã... E uma garrafa, e outra, e outra... O apito do guarda assusta qualquer vivente que uma dessas parafernálias mecânicas engoliu. Não dá pra controlar o que entra e sai daquela geladeira, tem muita gente entrando e saindo de casa também, a toda hora. No meio de tanto compromisso quem vai lembrar do arroz de domingo que ficou na vasilhinha azul da tuperware? Hoje ainda é quarta-feira, ainda tem gastrite mecânica sexta e sábado.

O domingo finalmente chegou, a desordem das parafernálias mecânicas não me insultam, não no trânsito, porque quando cheguei em casa e lancei a chave do carro em qualquer lugar, o mais longe possível de mim, eu precisei ir à geladeira pegar um copo de água. Desisti no meio do caminho. É melhor esfriar a cabeça primeiro pra, só depois, enfiar minha postura no caldeirão de lavas geladas que se tornou minha geladeira. Encontrar sentido no meio de coisas sem o menor sentido é o dom das pessoas criativas, acho que é por isso que a minha geladeira não assume uma forma normal. Acredito que as geladeiras das outras pessoas por aí estão sempre nos conformes.

São apenas 7 dias sem fazer uma faxina básica na minha geladeira e ela fica assim! Eu passo sete dias sem beijar na boca, mais sete dias sem ler um livro, mais sete dias sem ver meu pai, mais sete dias sem comer chocolate, passo sete dias sem fazer amor...só aqui já se foram 35 dias e eu continuo de pé. É, a geladeira também. Estou começando a acreditar que o que desmorona é o que fica por dentro, de mim e da geladeira. É um caos interno. Compreendi!

Hoje vou dar um jeito nessa geladeira... mas só depois de dar um jeito em mim.


* Jornalista.

  

Nenhum comentário:

Postar um comentário