sábado, 24 de junho de 2017

Sujeito Zero (15)


* Por Sergio Vilas Boas



Já bem tarde Alma teve fome. Colocou o discman sobre a cama; acendeu o abajur; apagou a nervosa lâmpada fluorescente tubular espiral; abriu até o fim a cortina do quarto; apanhou o menu-propaganda do restaurante que Quanaduck havia indicado, o do chinês que faz entregas a qualquer hora e sob qualquer condição atmosférica. Suspeitou que, àquela hora e naquelas circunstâncias, ninguém atenderia no 1-800 ou no outro número. Congelaram a normalidade também? Não.

Uma voz masculina respondeu em um inglês asiático. Alma pediu tofu com legumes, o mais possível de uma vegetariana heterodoxa suportar. A princípio, o sujeito não entende. Ela diz o número correspondente à opção do menu e ele respondeu “ouquê” – “ok”, Alma intuiu.

O atendente custou a compreender que o suco de laranja dela tinha de ser natural, sem açúcar ou outro aditivo. Ela não é o melhor exemplar da espécie denominada ecologicamente correta. Tampouco implica. Como integrava um amplo circuito de informações sobre pesquisas em mutagênese, conforme pude comprovar em www.unlimit.org, Alma se afirma capaz de distinguir a ciência séria da sensacionalista.

O chinês pediu trinta minutos de prazo para atender ao pedido. Bom demais para ser verdade. Ao estômago roncante, porém, ela enviou outra mensagem: a de que a comida, se viesse, levaria uma hora para chegar. Alma parece ter mania de se vacinar contra as decepções imaginando o pior. E se a comida não vier de jeito nenhum? Nessa hipótese melhor nem pensar. Ela é uma criatura muito, muito ansiosa.

Estranhamente – exceção para a noite, a neve e a oportunidade ímpar de lembrar, que ela assimilou com dificuldade –, tudo parecia um pesadelo. Alma arredou a poltrona para perto da janela e ficou olhando o lado de fora. Certamente, viu telhados cor de piche, brancas residências coloniais restauradas, chaminés que lembram Papai Noel, torres pontiagudas de igrejas presbiterianas e copas nuas de árvores centenárias iluminadas por refletores públicos turvos.

***

Para Alma, coincidência é uma palavra desprovida de mistérios, nada além da simultaneidade de duas ocorrências. Mas não deve ter sido o acaso que a estacou em Mystic. Ela pernoitou em uma região que Wapson conhece como a palma da mão, porque nasceu e se criou nela.

Mystic foi por várias gerações lar de marinheiros e pescadores impetuosos. Em 1776, às vésperas da revolução de independência dos EUA, a Coroa Britânica apelidou a vila de “maldito ninho de marimbondos nacionalistas”. Tem hoje menos que os 4 mil habitantes (dois mil na cidade, dois no campo – isso atualmente) da Carrancas de Seu Edmundo.

Em meados do século XIX, as ambições dos habitantes de Mystic giravam literalmente em torno das Américas. Fabricantes de embarcações lutavam para construir um navio capaz de circundar mais rápido o Cabo Horn, no extremo-sul da Argentina, e chegar a San Francisco, na Costa Oeste americana, onde o ouro abundava.

Hoje Mystic subsiste graças ao seu pequeno porto, ao turismo e à indústria naval de Groton, cidade vizinha, que produz submarinos nucleares. Por isso e por sua própria tradição, a vila possui um precioso acervo sobre a história marítima dos EUA, contada no museu Mystic Seaport, às margens de um rio que, naquela noite, estava perto de congelar.

O pai de Wapson, Frank Vogler, líder do Sindicato dos Trabalhadores da Marinha Mercante da Costa Nordeste, foi acusado de subversão pelos paranóicos seguidores de Joseph McCarthy, senador por Winsconsin. Vigiado e perseguido entre 1949 e 1955, Frank chegou a ser convidado a passar “uns anos longe da pátria”, mas resistiu. Em 1966, Frank, Martha e os filhos emigraram para o Brasil, por opção.

Exceto Wapson, o mais velho (então com 18 anos), que desbundava. Não trocaria a vida de hippie on the road por uma aventurazinha qualquer com familiares aos quais mal telefonava para desejar feliz natal. Seu projeto de futuro enfrentava três obstáculos: o pacifismo religioso dos bisavós; a moral hiperamericana dos avós; o socialismo consumista dos pais. Wapson tem muito a emprestar à geração de Alma. Ele é do tempo em que o “ser contra” era valorizado.


* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de Os Estrangeiros do Trem N (1997), Biografias & Biógrafos (2002) e Perfis (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.






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