terça-feira, 27 de junho de 2017

Panair


* Por Maira Parula


Tarkovski está em San Gregorio. Anos 80. O braço apoiado na guarda da cama, ele olha para a direita. Alguém ou uma janela. O quarto rosa-escuro é o mesmo da sua casa. O colchão de molas é o mesmo que me dava dores na coluna e medo do som de folhas arrastadas pelo vento na madrugada de sua cidade.

Há uma pequena foto presa na parede ao lado da cama. Amanhã passearemos na beira da sua praia. Uma areia lamacenta. O calçadão de amendoeiras. Sentamos no banco. Uma sombra. Eu seguro os óculos na mão porque quero ver você bem de perto.

Nessa época, você e Andrei usavam o mesmo modelo de bigode. Você me conta histórias que mal ouço. Dos livros que corrigiu. Do rapaz que conheceu. Eu penso nas duas vezes em que quase morremos juntos. O carro sem freio. O tiroteio no bar.

A exposição de Maria. O seu corpo bem-feito no judogi branco. O tempo que passamos brigados por pura vaidade até você me escrever uma carta apaixonada de amizade pedindo para voltarmos. Você chegando de surpresa naquele dia em que eu estava sozinha na cachoeira.

Atrás de Andrei uma antiga penteadeira como a da sua avó. Enfeitada de bibelôs amarelecidos que me dão uma angústia sem paradeiro. O cinzeiro da Panair na mesinha de cabeceira. O barulho dos talheres soltos na gaveta da cozinha.

A casa que cerca nossas conversas, a camisa quadriculada de Andrei e o guarda-roupa de espelhos, não sei se ainda está de pé. Eu comprei um onibusinho amarelo que nem deu tempo de te dar.

Ainda canto aquela canção de amor que você compôs na adolescência. Abraçados na jukebox, com quem mais cantaremos músicas bregas que só nós dois gostávamos?

Você não sabe, mas o lodo da sua areia foi todo coberto de mais areia. Toneladas. Assim li nos jornais. A cidade celebrou o acontecimento. O pântano sufocado. Hoje moro numa casa que você não vai conhecer. Nós nos esticávamos por cima do seu muro e víamos o mar. Um muro que você não conseguiu pular para se salvar.


* Poetisa. 



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