sábado, 17 de junho de 2017

O Tietê instrumento de penetração do Brasil sul ocidental


* Por Alfredo d’Escragnolle Taunay


No conjunto das vias de penetração do Brasil meridional ignoto e selvagem, nenhuma tem tão longínqua significação quanto a que ao Tietê o mais notável realce empresta. Está o nome do grande rio de São Paulo indestrutivelmente ligado à história da construção territorial do nosso enorme Ocidente. Muito mais antiga a navegação frequente de suas águas do que a do São Francisco e do Amazonas. Inçado de obstáculos, entrecortado pelas barreiras das itaipavas e dos saltos, como que a Providência propositalmente lhe tornara áspero e penoso o vencimento do dilatado curso para manter exercitadas as qualidades de resistência e a capacidade de sofrimento dos seus navegadores rudes. Nele não se nota a placidez lacustre amazônica, permitindo a entrada e a livre marcha das esquadrilhas e das esquadras, por milhares de quilômetros adentro do Continente, nem os enormes trechos desimpedidos do São Francisco, do Paraná, do Uruguai, nem ainda a navegabilidade do Itapicuru ou do Parnaíba.
A cada passo barram-no longas corredeiras, obstruem-no grandes saltos intransponíveis às embarcações como os de Itu, Avanhandava e Itapura. Assim, ao Sertão e aos mistérios do centro sul-americano — defendeu o Tietê com toda a energia das águas a cada passo escachoantes. Foi o adversário digno de ser vencido por aqueles que o dominaram. Quando às suas maretas entregaram a sorte incerta as primeiras e toscas esquadrilhas dos devassadores do Sertão? As que lhe sulcaram as ondas e afrontaram as penedias? É o que ninguém sabe e, provavelmente, jamais se saberá. Imemorialmente navegado pelos índios do planalto, em demanda das terras do Paraguai, desceram pelas águas do velho rio de Anhembi os exploradores das primeiras décadas da descoberta e do povoamento do Campo de Piratininga. E a contracorrente os espanhóis do Paraguai como categoricamente afirmou o velho Rui Diaz de Guzmán em La Argentina, ao relatar que os castelhanos frequentemente chegavam ao Avanhandava, fato que Azara recordou e Eduardo Prado denegou sem lhe caber contudo plena razão. A exegese de Groussac em documentos castelhanos quinhentistas é a tal propósito categórica. Documento oficial cartográfico surge-nos o primeiro em 1628, quando o capitão-general do Paraguai, D. Luís de Céspedes y Xeria, empreende a passagem do porto que talvez seja o atual Porto Feliz, a Ciudad Real, sempre pelo Tietê e o Paraná. Saindo de São Paulo, partiu em demanda a um porto do grande caudal, onde a navegação começasse a ser mais franca. Dezenove dias levou a descer o Tietê até a barra, no Paraná.
E em relatório a Filipe IV descreveu os perigos vencidos nas corredeiras e o trabalho da varação dos canoões nos saltos do Avanhandava e de Itapura assim como “la abundancia de pescado, y la grandísima suma de caza de tigres, leones (sic), y muchísimas antas”. Da jornada deixou uma “topografia”, como no tempo se chamava, uma das maiores preciosidades, certamente, do Arquivo General de Índias, em Sevilha. É talvez o mais antigo mapa de penetração do Brasil, até agora divulgado, e tem inestimável valor evocativo.
Com grande júbilo o destacamos e divulgamos e nele se estampa o primeiro documento iconográfico da vila de São Paulo do Campo de Piratininga, o tosco desenho que retrata a sede de sua municipalidade, de sua Câmera como se dizia no tempo e como ainda dizem os que refletem as vozes ancestrais. Por ele se vê que os nomes de vários dos maiores rios do sistema paraniano eram os mesmos naquela época longínqua.
Pelas águas do Tietê cada vez mais frequentes desceram as bandeiras cativadoras de índios e prospectoras de ouro. Provavelmente por elas também navegaram os nossos primeiros devassadores da selva mato-grossense e escaladores dos Andes, os sertanistas, outros obscuros “cujas ações heroicas a lima do tempo consumiu”, na frase do velho cronista que lhes celebrou os feitos. Avoluma-se o movimento para o Oeste misterioso com o decorrer dos anos seiscentistas. Pelo Tietê descem os últimos grandes acossadores de índios e destruidores de reduções jesuítas.
E é por ele que corre às terras do Sul mato-grossense o grande sorocabano Pascoal Moreira Cabral Leme, mais tarde descobridor do Cuiabá e apossador definitivo, para a coroa lusitana, da imensa região central lindeira dos castelhanos do Peru. Escoam-se os últimos anos da centúria seiscentista e encerra-se, para os paulistas, a era da caça ao índio, o período cruel dos devassadores. Reboa, de repente, estrepitoso grito de descoberta: as duas sílabas de palavra que é dos maiores desencadeadores dos sentimentos humanos: Ouro! Ouro! Revela-se o primeiro Eldorado brasileiro, o dos Cataguases, depois território das Minas Gerais do Ouro de São Paulo. Fazem-se mineradores os grandes descedores de índios e o âmago do Brasil é atingido pelas bandeiras, na ânsia do metal. Acodem os ultramarinos aos milhares, para compartilhar das descobertas dos paulistas. Dá-se o primeiro grande e fatal embate da corrente nacionalista com a prepotência dos reinóis. Em massa abandonam os filhos de São Paulo as terras das minas de sua Capitania aos contrários, apoiados na parcialidade dos compatriotas, detentores da autoridade. É imensa, porém, a terra do Brasil e os paulistas, acostumados a fazer mais do que promete a força humana, hão de descobrir novos Eldorados.
Surge em 1719 a notícia do encontro do segundo deles, por Pascoal Moreira Cabral e seus companheiros ilustres. As novas da “fertilidade” das minas do Cuiabá alucinam as populações. Terra do ouro onde tão vil é o metal que os descobridores, a passarinhar, atiram com os grãos amarelos, para poupar chumbo! As notícias aos mais calmos estarrecem... Dá-se colossal rush pelas águas do Rio das Entradas e Pedro Taques conta-nos as misérias indescritíveis de muitas destas esquadrilhas, organizadas às pressas e a esmo, para vencer o deserto aspérrimo, nelas embarcando indivíduos de todas as categorias: aventureiros e burgueses afortunados e colocados, civis, militares, eclesiásticos.
As febres, a fome, os naufrágios, os índios exterminam expedições inteiras. Não tardam, porém, providências régias para a organização das novas terras doadas à monarquia lusitana, pelo bandeirantismo. Pelos rios vai Rodrigo César de Meneses, a Cuiabá, instituir os primórdios daquilo que, em 1748, servirá ao estabelecimento da nova capitania mato-grossense.
Base de todo este novo surto de exploração constituiu-se o remansoso local da penedia onde, segundo os índios, vinham as araras amolar os férreos e aduncos bicos, essa Araraitaguaba, de tão prestigiosa rememoração em nossos fastos.
Núcleo de bandeirantes, de sertanistas, já em 1728 cria-se freguesia. Enceta-se então a era das monções regulares. Continuam, Tietê abaixo, as navegações instigadas pela fama das “grandezas do Cuiabá”. A todos alvorota a chegada do primeiro ouro, os quintos reais avidamente cobiçados pelo rei pródigo e brevemente Fidelíssimo.
Nada faz diminuir o afluxo dos imigrantes! Nem as mais sinistras notícias do extermínio de expedições inteiras pelos terríveis canoeiros e cavaleiros, paiaguás e guaicurus. Nem o anúncio das pestes, das carneiradas, e das temerosas fomes do Cuiabá, onde, desvairados pela ânsia do ouro, nenhum mineiro planta, e onde, mais uma vez, se realiza o que a mitologia grega de simbolismo sempre poderoso, concretiza na imagem de Midas, morrendo de inanição à margem do Pactolo.
Continua o afluir de gente e este povoamento de Mato Grosso é, talvez, a mais evidente demonstração da energia do aventureirismo paulista. Que distância imensa a vencer! E que viagem temerosa esta de Araraitaguaba às margens do Coxipó!
No entanto, aos espanhóis do Paraguai, que lhes custava atingir aquelas paragens, se nada mais tinham do que subir uma série de correntes plácidas sem um único acidente que lhes interrompesse a viagem, como com tanta propriedade recorda Southey? Não é bem assim! Havia os paiaguás e os guaicurus; isto bastou para lhes vedar o acesso do Alto Paraguai.
Caem em declínio as minas de Cuiabá e escasseiam as monções, mas nem por isto deixa a navegação do Tietê de existir, pois jamais recuaram as quinas, chantadas pelos paulistas, às margens do Paraguai e do Guaporé. E legitimadas graças à ciência e à argúcia do seu patrício, o filho de Santos, a quem imortalizou o Tratado das Cortes.
 
(História geral das bandeiras paulistas, Tomo II)


* Engenheiro militar, professor, político, historiador, romancista, teatrólogo, biógrafo e etnólogo, membro da Academia Brasileira de Letras.

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