sábado, 17 de junho de 2017

Masoquismo da natureza


As cigarras voltaram, anunciando, com seu canto estridente e monótono, o início da primavera, após um inverno, sobretudo, chuvoso, pelo menos na região de Campinas, onde resido. Escrevo este texto em outubro de 2009. Aliás, neste ano, choveu além da conta por aqui. Li, nos jornais locais, uma informação, fornecida pelo Instituto Agronômico, que me assustou, e não sem razão. Foi a de que no mês de julho as chuvas foram as mais copiosas e intensas desde 1943. Ou seja, desde que nasci, há já distantes 66 anos.

Algo, portanto, está desregulado na natureza. Está aí uma comprovação, para os que ainda não acreditam (e há muitos e muitos céticos e alienados que não creem), que o “efeito estufa” está em andamento, ameaçador e presente, com potencial de estragos impossível de se dimensionar.

E o que fazem os homens, mesmo diante de evidências tão claras de desarranjo no delicadíssimo mecanismo da natureza? Poluem, poluem e poluem. Depredam, depredam e depredam. Destroem, destroem e destroem.

Como não rir, portanto, diante da caracterização da nossa espécie como “Homo Sapiens”? Que sabedoria é esta que ataca a biosfera, provavelmente o único espaço no universo (pelo menos o único conhecido e comprovado) que possibilita a existência de vida? É algo que nunca consegui compreender quando criança e que compreendo menos ainda agora.

Seria só alienação ou é Thanatos agindo para conduzir a humanidade à extinção? O historiador britânico Arnold Toynbee escreveu um instigante ensaio a respeito, que começa da seguinte forma: “O termo ‘biosfera’ foi criado por Teilhard de Chardin. É um termo novo, exigido por nossa chegada a um estágio mais avançado no progresso de nosso conhecimento científico e poder material. A biosfera é uma película de terra firme, água e ar que envolve o globo (ou globo virtual) de nosso planeta Terra. É o único habitat atual — e, tanto quanto podemos prever hoje, é também o único habitat jamais viável de todas as espécies de seres vivos que conhecemos, a humanidade inclusive”.

Será que não passa por nenhuma cabeça, notadamente a daquelas pessoas com poder de decisão, que os recursos existentes neste nosso domo cósmico são limitados? É tão difícil de entender que todo o lixo gerado, sólido, líquido ou gasoso, fica por aqui mesmo, emporcalhando esse nosso lar da Via Láctea? É tão complicado de compreender que somos, apenas, uma espécie de vida, mas não a única e, talvez, nem mesmo a mais importante? É, parece que é.

Arnold Toybee prossegue em suas considerações: “A biosfera é estritamente limitada em seu volume e, por isso, contém um estoque também limitado dos recursos de que as várias espécies de seres vivos têm de lançar mão para se manterem. Alguns desses recursos são renováveis; outros, insubstituíveis. Qualquer espécie que utilize demais seus recursos renováveis ou esgote os insubstituíveis condena-se à extinção. O número de espécies extintas que deixaram vestígios no registro geológico é assombrosamente elevado em comparação com o número das ainda existentes”.

Pois é, esse tipo de informação é veiculado a todo o momento. Milhões de pessoas, mundo afora, fazem essa constatação, mas... De prático mesmo, não se faz nada, absolutamente nada, rigorosamente nada a não ser um monótono e fútil bla-bla-blá, para preservar pelo menos a biosfera, que nos assegura a possibilidade de viver. Por que? Responda você, meu caro leitor. Eu não tenho a resposta.

O homem, desde que surgiu sobre a Terra – sobre essa película sumamente frágil e delgada que é a biosfera, insisto – resolveu “brincar de Deus”. Tomou em suas mãos a prerrogativa de decidir quem deveria seguir vivendo e quem não. Entendeu que a natureza era imperfeita e resolveu “aperfeiçoá-la”. Mexeu, inclusive, onde não devia e agora está metido em sérios, em seriíssimos apuros. Toynbee afirma, no citado ensaio: “O homem tem sido a mais bem sucedida de todas as espécies em dominar os demais constituintes da biosfera, animados e inanimados. No despertar de sua percepção consciente o homem encontrou-se à mercê da natureza não-humana; decidiu-se a fazer de si o senhor da natureza não-humana e avançou progressivamente em direção à consecução desse objetivo. Nos últimos 10.000 anos, desafiou a seleção natural, substituindo-a pela seleção humana na medida de suas possibilidades. Promoveu a sobrevivência de plantas e animais que domesticou para suas próprias necessidades e empreendeu o extermínio de algumas outras espécies que considerou nocivas. Rotulou essas espécies indesejáveis de "ervas daninhas" "vermes" e, ao lhes dar esses rótulos pejorativos, informou que fará todo o possível para exterminá-las. Na medida em que o homem conseguiu substituir a seleção’ natural pela seleção humana, reduziu o número de espécies sobreviventes”.

Pelo andar da carruagem, não tardará para que não tenhamos mais cigarras (entre tantos outros milhões de seres vivos). Afinal, o homem considera-as nocivas aos seus propósitos, por atacarem as raízes das árvores. Ademais, não lhe servem para nada. Não são alimentos, não são animais domésticos e não se deixam domar por esta arrogante criatura.

Mas não serão apenas as cigarras que irão desaparecer. O avanço do “efeito estufa” é um alerta para essa criatura que adora “brincar de Deus”, mas que não sabe o que fazer com as conseqüências dessa sua brincadeira. A rigor, a natureza é a grande culpada. Por que? Por haver permitido o surgimento e o desenvolvimento deste supremo predador. Talvez por isso, esteja prestes a destruí-lo. O escritor português, Casimiro Brito, fez a seguinte constatação, em um de seus livros: “Vocação masoquista da natureza: consentiu que o vírus humano a invadisse e sobrevivesse”. Certamente, já colocou em marcha o mecanismo para corrigir esse erro. Mas ao eliminar o homem, é provável que elimine, também, todo e qualquer vestígio de vida. Inclusive plantas, peixes, insetos, animais, amebas, bactérias, vírus e todos os demais seres viventes. E as cigarras, logicamente.


Boa leitura!



O Editor.


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