quarta-feira, 28 de junho de 2017

Crisálida número dois


* Por Mara Narciso
 
Não sei de onde me veio aquele furor faminto repentino. Casada há dois anos e decidida a ter um filho, estava de fato grávida, e passado o enjoo inicial, surge uma gana descontrolada por comida, de tal ordem, que me fez engordar 30 quilos em seis meses. Após uma cesariana, tornei-me, enfim, mãe. Estava realizada, apesar da ameaça que o desconhecido opera.

Feliz no meu papel, após quatro meses voltei ao trabalho de professora. Tinha quem cuidasse do meu filho, assim, minha vida continuava organizada. Numa peleja gloriosa, voltei aos meu 65 quilos anteriores a gravidez, mas engravidei de novo, desta vez por descuido. E lá me vêm novamente os trinta quilos, que, depois do segundo parto, não consegui eliminar. Durante a amamentação ganhei muito peso. A chegada aos cem quilos foi fatal, porque daí para frente o limite inexiste. Fui a vários endocrinologistas, iniciei mudanças no estilo de vida, abandonando o sedentarismo, pizzas, sanduíches, chocolate e refrigerante, mas minha aderência logo se arrefecia, e eu via o marcador da balança subir.

Perdia cinco quilos e ganhava dez, sofria para vencer a vontade de comer, para depois desistir, pensando: amanhã recomeço. Vendo que não conseguia fazer dar certo, sentia-me esgotada, sendo confrontada com a culpa. Estava imensa diante do espelho, nada me servia. Não me reconhecia nas fotos, o mundo ficou pequeno para mim quando ultrapassei os 120 quilos. Era um gigante, sem espaço nem mobilidade.

A vida boa e o emprego não me saciavam, então precisava comer. Eu, uma mulher plena, com vida afetiva e profissional bem estabelecida, marido compreensivo, filhos saudáveis, mãe colaborativa, vi mudar, com a obesidade, o jeito de as pessoas me olharem. Até numa reunião de trabalho, desprezavam minha opinião, não me davam tempo para me manifestar, em represália ao enorme espaço físico que eu ocupava.

Reparei nas amigas, que após o segundo parto me estimulavam, olharem-me com desdém, como se eu fosse preguiçosa, não tivesse amor próprio e nem coragem para tirar o que me deixava infeliz. Usei remédios prescritos pelo médico e clandestinos em altas doses e longos prazos. Cheguei a perder 25 quilos, mas inexoravelmente ultrapassava o peso anterior. Era algo incontrolável, que me dominava.

Procurei fazer terapia comportamental com psicóloga, por diversas vezes fiz matrícula na academia, mas o exibicionismo e o desfile de belos corpos por lá, não me permitiam frequentar o lugar. Numa caminhada, passar na mesma porta duas vezes era incômodo, pois notava que as pessoas me olhavam e pensavam: não vai adiantar. Exausta, sentindo o permanente massacre da obesidade, que tirava meu fôlego e a liberdade de ir e vir cheguei a pensar em morrer, mas, acabei por me decidir, após inúmeras pesquisas, ser submetida à cirurgia bariátrica.

Foi um ano de preparação, participando de grupos nas redes sociais, conversando com gente que fez e deu certo, além dos desastres, das ineficácias e até das mortes. Como atingi IMC de 49, 6 - 135 quilos em 1m e 65 cm -, meu plano de saúde cobriria meu tratamento. Passei por vários profissionais, fiz inúmeros exames e após ver o lado físico e emocional, entrei no bloco cirúrgico. Seria uma cirurgia pela via laparoscópica.

Quando acordei, estava tudo terminado. Foi normal, e não senti grandes dores. Daí, passei pelo périplo da dieta líquida, depois pastosa e por fim sólida, ao longo de três meses. A perda de peso no 1º mês foi monumental, quase um quilo por dia. Com exercícios, ao fim de um ano estava com 85 quilos. Programei e passei pela reconstrução do meu corpo. Fiz a retirada de pele no abdômen e tive refeitas as mamas. Renasci para o mundo, e para mim mesma. Saí do casulo que me esmagava.

Com 45 anos, eu, que não era aceita, agora era convidada e elogiada. Virei referência.  Não que eu queira ditar normas, - já ditando-, ou achar que o obeso não pode ser feliz, mas eu, que passei pelo “gordo”, “magro”, quase como o “morto, vivo”, das brincadeiras infantis, proclamo a todos que ter a chance de renascer em outro corpo, que ainda sinto estranho, parecendo não ser meu e nem mesmo ser eu, é uma estranheza agradável. Não teria outro jeito de emagrecer sem operar o estômago? Não, não tinha. Meu marido gostou de tudo, especialmente do amor que sinto por mim e por ele, concretamente. Com essas novas asas, agora eu quero voar muito!


* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”


Um comentário:

  1. A perda de peso parece mesmo diretamente proporcional ao ganho de amor próprio. E é muito bom que seja assim, para a mente e para o corpo. Abraços, Mara.

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