segunda-feira, 26 de junho de 2017

A morte do poeta e os ecos da “novembrada”

* Por Eduardo Paredes

Historicamente Santa Catarina é um estado privilegiado, como poucos, em termos de produção cultural. A pluralidade e diversidade desse patrimônio imaterial advêm, acredito eu, de um encantamento com suas belezas naturais e do encontro das inúmeras etnias que se espalham por todo o território catarinense. Por isso mesmo, é absolutamente inadmissível que a Cultura continue sendo (mal) tratada como peça assessória no contexto das políticas governamentais. Essa riqueza artística e cultural acumulada é que dá identidade ao povo catarinense. No entanto, infelizmente, o setor cultural vem lutando para sair do plano do supérfluo e ganhar a importância que lhe é devida.


Em termos de política pública cultural o que constatamos é um estado de abandono, desrespeito e contínua omissão. Há muitos anos a Cultura foi embrulhada num mesmo pacote com o Turismo e o Esporte, compondo uma Secretaria que já se chamou SOL – Secretaria da Organização do Lazer, inspirada nas teorias do “ócio criativo” do sociólogo italiano Domenico De Masi.  Qual o sentido de se "organizar o lazer" e de se pregar o "ócio criativo", especialidade na qual boa parte dos nativos da Ilha de Santa Catarina são PHD?Parece piada, mas não é.

Tendo recebido como herança maldita do seu antecessor, o atual governador manteve intacta a estrutura de Governo que, a par das chamadas Secretarias Centrais, sustenta a paquidérmica coleção de quase 40 Secretarias de Desenvolvimento Regional. Qualquer cidadão com um mínimo de bom senso, informação e cultura reconhece que esse modelo condena o Estado a uma situação de profunda anemia financeira. É cristalino que essas SDR somente existem para acomodar cabos eleitorais e que a descentralização poderia muito bem ser executada através de Coordenadorias, Diretorias ou Gerências. Mas quem se atreve a cortar as benesses, mordomias e privilégios contidos no status de Secretaria? Por que arriscar a base de sustentação política que assegura a continuidade no poder? Ninguém é bobo – somente o povo, o contribuinte, que paga a conta.

É triste reconhecer que o Governo do Estado, tão pródigo na criação e manutenção de tantas Secretarias, não dê autonomia e independência para esses três setores importantíssimos, que são o Turismo, o Esporte e a Cultura. Não há como reconhecer a importância do Turismo para a economia do Estado. Mas esse setor também não consegue se desenvolver e expandir suas potencialidades da forma como está situado. As demandas do Turismo são vastas e complexas e precisam de um planejamento próprio. O mesmo vale para o Esporte e a Cultura, que são determinantes para uma política pública séria que pensa em formação de cidadania e inclusão social. Se em determinado momento o Turismo se entrelaça com a Cultura, essa área de convergência é ínfima para justificar tal atrelamento. Arrisco dizer que de cada mil turistas que visitam o Estado, depois da praia menos de uma dúzia procuram por um museu, teatro ou galeria de arte. O destino natural são os shoppings, bares, restaurantes e baladas. Isso é óbvio.

A Cultura padece ainda mais por esse equívoco administrativo, pois sobrevive à sombra do Turismo. As casas de cultura e espaços culturais vivem à míngua. Os artistas há muito foram deserdados, com os poucos editais públicos de fomento às atividades artísticas sendo ano a ano empurrados com a barriga, procrastinados ou adiados. O que impera é a política neoliberal de transferência de responsabilidade das decisões sobre a Cultura para a iniciativa privada, na medida em que a principal ação de governo é induzir os produtores e agentes culturais a utilizar os mecanismos de incentivo fiscal. Isso quando o próprio Governo não compete de forma desigual com os produtores independentes, indo ao mercado captar patrocínio para seus próprios projetos, como no caso emblemático da Ponte Hercílio Luz. E com isso, o que resta como marca de ação governamental são a ausência, o autoritarismo e a instabilidade na área cultural.

Na última segunda-feira, 25 de novembro, tive a honra de ser agraciado com a Medalha do Mérito Cultural Cruz e Souza. A maior honraria da Cultura no Estado, algo que nunca cobicei e que jamais imaginei alcançar. Ainda tenho dúvidas se de fato sou merecedor de tal distinção. Mas como estava em ótima companhia, resolvi aceitar. Juntos estavam, in memoriam, o mestre Zininho e o escritor Holdemar de Menezes, mais o coreógrafo Amarildo Cassiano, do Ballet Bolshoi de Joinville, o cenotécnico e administrador cultural Osni Cristóvão, o historiador e fotógrafo Joi Cletison Alves, e as instituições Associação Coral de Chapecó, Federação Catarinense de Teatro – FECATE, Museu Victor Meirelles e Biblioteca Pública do Estado.  Confesso que quando o escritor Amilcar Neves, membro do Conselho Estadual de Cultura, fixou em meu peito a medalha que leva o nome de Cruz e Souza, a emoção bateu forte e invadiu a minha alma. Um momento fugaz, que ficará guardado eternamente. Só que a realidade dos fatos logo me fez trocar em parte a alegria pela tristeza, o envaidecimento pela indignação.



A começar pela consciência de que a sina de Cruz e Souza, apesar da passagem do tempo, ainda persiste entre boa parte dos que se atrevem a fazer da arte uma profissão de fé.  Gênio do simbolismo universal, maior poeta brasileiro de todos os tempos na minha modesta opinião, Cruz e Souza morreu na mais absoluta miséria. Em vida, sofreu na pele negra a rejeição causada pelo preconceito e racismo, tendo suportado a dor de ver quatro de seus filhos morrerem de tuberculose e a mulher Gavita enlouquecer aos poucos diante de tanto sofrimento, decorrente da fome e da péssima condição de vida da família. De Minas Gerais, onde havia ido buscar tratamento para a tuberculose que por fim também o levou, o corpo de Cruz e Souza foi transportado em um vagão de trem que levava gado para o Rio de Janeiro, onde foi sepultado praticamente como indigente. Bastou morrer para que a sua genialidade fosse reconhecida, sendo alçado ao panteão do simbolismo universal ao lado de Verlaine, Rimbaud e Mallarmé. Mas seus restos mortais, trasladados alguns anos atrás para Florianópolis, a sua cidade natal, entre discursos demagógicos e foguetórios, vergonhosamente continuam abandonados num canto perdido do Museu Histórico que, solene e ironicamente, também leva seu nome – Palácio Cruz e Souza.

Enquanto as medalhas iam sendo distribuídas eu me afundava na poltrona e em meus pensamentos cada vez mais cinzas. Olhando o palco do Teatro Álvaro de Carvalho, fundado em 1857 e que tantos artistas e espetáculos memoráveis acolheu ao longo de sua história, lembrei-me de que ele também, Álvaro de Carvalho, o primeiro dramaturgo catarinense, igualmente não teve o descanso eterno que merecia e o respeito que se esperava dos governantes catarinenses. Seus ossos mortais continuam abandonados em Buenos Aires, aonde veio a falecer de febre tifoide em 1865.

Pensei em Zininho, o nosso poeta maior, autor do hino oficial da capital catarinense. Enquanto sua viúva e sua filha recebiam a comenda que, em seu caso, já veio tarde, também lembrei de toda a privação que passou no crepúsculo de sua vida. O nosso maior músico, Luiz Henrique Rosa, que naquela mesma data se vivo fosse completaria 75 anos, também foi solenemente ignorado. Assim como a data litúrgica, 25 de novembro, que é dedicada a Santa Catarina - padroeira dos artesãos, artistas, bibliotecários, jovens, estudantes e desse Estado – sequer foi mencionada pelo cerimonial, num lapso imperdoável. Pior foi constatar que o desprestígio e desapreço pela Cultura catarinense se evidenciava na ausência de quem se esperava exatamente o contrário. Não apareceu nenhum senador, deputado, representante do prefeito, vereador, secretário de Estado (além do titular da pasta do Turismo, Esporte e Cultura, Valdir Walendowski),  sequer representantes das entidades culturais (com raras exceções), assim como nenhuma cobertura por parte dos jornais ou emissoras de televisão. O próprio Governador do Estado, Raimundo Colombo, que foi quem assinou a outorga da Medalha do Mérito Cultural,  vim a saber pela coluna do Cacau que naquele exato momento tinha ido ao shopping assistir a um filme depois de  dez anos sem ir ao cinema. Poderia ter esperado um pouquinho mais. Gostaria muito de ter dirigido a fala que me encarregaram em nome dos homenageados (e que reproduzo em parte nesse artigo) olhando nos olhos do nosso governador só para ver qual a sua reação e o que teria para dizer. Por isso, só tenho uma palavra para resumir o que ocorreu: lamentável! 

Ao que parece, os sismógrafos dos políticos e governantes continuam desligados. Não captaram ainda os tremores que vêm das ruas, do povo anônimo e cada vez mais impaciente. Esqueceram-se dos ecos da “novembrada” (que hoje faz 34 anos e que também deve passar no esquecimento), assim como das “diretas já”, do impeachment do Collor e até mesmo das manifestações que varreram esse país como um tornado em meados deste ano. Podia ainda lhes lembrar da revolução francesa e bolchevique, da chinesa e da cubana, com as consequências diretas para os incautos governantes que também ignoraram as vozes inconformadas que vinham das ruas. Mas prefiro mirar a outra margem: se os governantes não mudam, que se mudem os governantes. Para tanto, é necessário que o povo se mobilize, permanentemente, determinado a combater essas redes piramidais de apadrinhamento que mantêm inabaláveis as estruturas desgastadas do poder e que permitem aos seus ocupantes manterem por longos períodos o estamento e o status que lhes asseguram as benesses e as vantagens que ele, o povo, banca. Mas para isso é preciso liberdade de informação e um processo contínuo de cidadania, educação e inclusão cultural. 

Ainda haverá o dia em que o slogan para esse nosso Estado, muito mais do que uma mera peça publicitária artificial, mas como reflexo concreto de um pacto pela Cultura entre governo e sociedade, seja de verdade “Santa, Bela e Culta Catarina”!



Jornalista e cineasta



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