sexta-feira, 31 de março de 2017

O livro de Ñasaindy Barrett de Araújo, a filha de Soledad Barrett


* Por Urariano Mota


Quando maio chegar, o Brasil vai conhecer a poesia da filha de Soledad Barrett, a guerrilheira assassinada no Recife sob a ditadura Médici. Lançado pela Editora Mondrongo, o livro de Ñasaindy Barrett de Araújo tem um nome que sugere a difícil luta da dignidade todos os dias: “Do que foi pra ser Agora”. Para ele, pude escrever a apresentação que divulgo a seguir.

Poesia e Vida,

Chamo a atenção do leitor para o caráter estético e político do livro “Do que foi pra ser Agora”.

Primeiro, porque é impossível não falar que sua autora Ñasaindy Barrett de Araújo é a única filha de Soledad Barrett. Filha amada pela guerreira de quatro povos, como a chamava o grande poeta Mario Benedetti. E acrescento: o caráter literário e político do livro se dá não só pelas condições de vida e morte da guerreira paraguaia, assassinada pela ditadura no Recife. Mas pela própria vida de sua filha poetisa.

Ñasaindy nasceu em Cuba, por força da militância política dos pais, Soledad Barrett Viedma, paraguaia, e José Maria Ferreira de Araújo, brasileiro, engajados na luta contra a ditadura militar na América do Sul. Ambos foram assassinados pela repressão no Brasil. Ele em 1970, em São Paulo após ser preso e torturado. E ela em 1973, no Recife, delatada pelo companheiro, o militante infiltrado, Cabo Anselmo.

No primeiro registro civil da autora, ela se chamava Ñasaindy Sosa del Sol, dos sobrenomes que seus pais usavam naqueles dias. Eram regras de segurança na época. E assim, Ñasaindy Sosa del Sol foi chamada durante a primeira infância. Chegou ao Brasil em 1980, com 11 anos de idade. E viveu entre o choque das diferenças culturais e políticas, mais as dificuldades encontradas por não ter documentos até os 26 anos de idade.

Entendam. Esse curto recorte biográfico é necessário, porque a poesia é mais que o poema, sempre. A vida foi presenteada a Ñasaindy como um destino inescapável, como um fruto complexo da sua genética, personalidade e formação. Pois Ñasaindy Barrett de Araújo é a filha do tempo, dos anos mais difíceis da ditadura. E de tal modo, que fazem a poetisa se perguntar numa poética irônica, numa pergunta que é também de todo jovem destes dias:

“E o chip, dentro de nós.
Quem foi que implantou?
O que me faz sonhar?
O que me faz chorar?”

Assim posto, chegamos à hora da poesia pelos poemas, somente pelos poemas, se tal arbitrariedade é possível. Mas tentemos a proeza. Tento e fico a meio caminho, porque a poesia de Ñasaindy nos fala:

“Os homens ainda amam
mesmo na angústia e na dor”.

Não é verdade? Pois de quanta dor, impureza e anormalidade se faz o mais límpido lírio dos campos? E se queremos ficar no reino do poético porque poético só poético, acompanhem a poesia linda, madura e fina que há nestes versos

“Percorre induzida a borboleta seu percurso.
Encontra-se pousando em uma hortênsia azul”.

E não resisto, ao fim, de comparar uma sensibilidade poética que descende em linha direta do que li antes, quando pesquisava sobre a heroína de quatro povos, que recriei em meu livro “Soledad no Recife”. Acompanhem este documento, estes versos escritos por Soledad Barrett:

“Madre, no te apenes si no vuelvo
me encontrarás en cada muchacha de pueblo
de este pueblo, de aquel, de aquel otro
del más acá, del más allá
talvez cruce los mares, las sierras
las cárceles, los cielos
pero, Madre, yo te aseguro,
que sí me encontrarás!

A primeira vez em que li o belo e último poema de Soledad Barrett, escrevi: “Agora vocês entendem a estética que é uma ética e uma profecia em um só poema. A vida que veio depois mostrou esse poema como uma canção de despedida”. Fui precipitado. A canção de Soledad que se tornou impossível de ser desenvolvida, ressurge no livro de sua filha. De modo particular, podemos dizer que existe uma alma semelhante à estética de Soledad na poesia de Ñãsaindy. Olhem estes versos do livro e o que suas linhas lembram:

“Entre todas as gentes,
sei que tenho um irmão.
E é porque sinto suas dores,
que mesmo sem ter olhos alegres,
mesmo sem ver a verdade ausente
sei que a luz está presente”.

Enfim, “Do que foi pra ser agora” é mais que um livro. Ele é um acontecimento de importância social, uma ordem da vida e renascimento. Como tão bem está escrito em uma de suas páginas: “A chuva caiu tão bela quanto foi a sua espera”. Assim é o livro da filha de Soledad Barrett. Na poesia ela alcançou o próprio nome: Ñasaindy Barrett de Araújo, poeta. Toda a gente do Brasil tem que conhecer.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros




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