domingo, 18 de dezembro de 2016

Profissão e personalidade

* Por Clementino Fraga

O médico moderno há de ser um representante da nata intelectual, formado no consenso das qualidades efetivas de apresentação e de personalidade. Não basta ser; é mister também parecer. Aliás, em nenhuma profissão a projeção individual é mais flagrante que na medicina, a considerar, como queria Nicolle, que “a tendência do ser humano é defender a sua personalidade”. A própria educação médica, inspirada nas ciências biológicas, desenvolve no profissional uma segunda natureza, um tanto hipertrófica no sentido da individualização. E não há como a doença para revelar o aspecto pessoal em cada caso patológico; por outro lado a autoridade do clínico, sempre decisiva ou conselheira, socialmente, o destaca numa auréola de respeito e ascendência. Em alguns o individualismo transviado conduz ao espírito de suficiência, sobretudo sistemático em relação às normas terapêuticas. Será, talvez, o seu maior pecado. As coordenações biológicas que defendem o homem integral, na unidade do corpo e espírito, materializam o conceito da personalidade. Seria absurda a negação destas vantagens na formação intelectual e moral do médico, e neste caso, como conciliar a afirmação de individualidade com a medida rasa, niveladora, que caracteriza a medicina do Estado? Onde a prevalência das qualidades sem os estímulos da liberdade de ação? Não se compreende a noção de responsabilidade imposta a doentes, que não elegeram o profissional nos anelos de sua confiança. E depois, pode-se admitir a despersonalização do médico no momento científico em que a medicina se orienta no sentido da personalidade do doente? Talvez tanto tivesse sido possível no domínio ditatorial das ciências analíticas; não será o Estado totalitário ou marxista, nas contingentes restrições à liberdade humana, que poderá sobrelevar às tendências científicas que noutros tempos germinaram na mentalidade antiga, qual se encontra no Diálogo sobre a Sabedoria, em que Sócrates doutrinava: “os bons médicos, quando um doente os procura para que lhe curem uma doença dos olhos, por exemplo, começam por declarar que não poderão curar somente os olhos, senão também a cabeça, e pretender curar a cabeça sem atender ao corpo inteiro é impossível. Tendo isto em conta prescrevem um regime para todo o organismo, cuidam e curam, assim, a parte em que a doença se manifesta. Porém do mesmo modo que os olhos não podem ser tratados sem a cabeça, e esta sem o corpo, também este não pode ser curado sem curar a alma, e, se os médicos gregos não são capazes de curar tais enfermidades, é que ignoram o conjunto do que devem tratar. Porém a alma, de onde brotam para o corpo todos os bens e males, pode ser tratada por meio de certos diálogos”.

(Cit. por Pizarro Crespo – “La Nueva Medicina Psicobiológica”, Sem. Mem. Fev. 1937. Buenos Aires.)

A medicina atual, armada de outros poderes, visa a unidade psicossomática; deve começar, pois, preparando o médico nas vantagens da valorização individual.

Os benefícios do individualismo médico que se exercem no desenvolvimento do espírito, da coragem moral, do sentimento de solidariedade humana, não discordam da altivez, que é do orgulho bem fundado a só parte apreciável. Para tanto conseguir é indispensável a posse e gozo da independência intelectual, respeito de si mesmo, segurança de opinião. São tais os predicados que cumpre ao médico cultivar para crescer no apreço social: sobretudo, o aspecto humano de seus votos e aspirações deve avultar na atuação profissional, longe da preocupação subalterna dos interesses materiais. “Ciência sem consciência é a ruína da alma” proclamara Rabelais. Assim sendo, o individualismo médico desconta no consenso de virtudes preclaras, alguns pecados veniais de intolerância e de orgulho, avivados nas arestas do espírito de suficiência. Sem dúvida, foram as ciências biológicas que conferiram à medicina seu maior prestígio; deram-lhe o que ela não tinha até o começo do século XIX - o perfume de ciência. É justo reconhecer que, com o Renascimento, a anatomia já interessava aos que exerciam a arte de curar. A paixão de Leonardo da Vinci pela ciência morfológica trouxe à arte decantados fulgores. Era a ciência nascente, consumindo de emoções novas a materialização sublime da arte. De começo, até mesmo as matemáticas, a geometria e a astronomia eram cultivadas como artes, mas a arte já se comprazia no deleite das especulações filosóficas. A arte foi sempre a parte prática, técnica, de cada conjunto de conhecimentos. Depois é que a técnica passou a ser da ciência, chegando a seu maior desenvolvimento com o método experimental em medicina: a epopeia pastoreana representou a grandeza culminante das ciências analíticas.

A ciência refez-se nos fatos, recebendo da base empírica a contribuição de seu espírito tradicional, seus sonhos e ilusões; criou o ambiente novo, devolvendo à arte da medicina formas concretas de estudar a doença e tratar os doentes: em tudo a intuição científica a par da inspiração artística, na altitude de outras aspirações. Chegou para o homem de ciência o momento de duvidar: se a armadura experimental da ciência descobria fatos novos, alguns jamais pressentidos, onde levar o entendimento no caminho de outras aquisições? e a dúvida no homem de ciência tem sido um dos motores de grandes empreendimentos humanos. Rist, no seu belo livro Qu’est-ce que la Medicine?, comenta, a propósito de ciência e arte: “o conhecimento científico é, singularmente, a exaltação do espírito. Tem a dignidade que todos reconhecem quando se aplica aos espetáculos e acontecimentos do cosmos, às trocas e metamorfose da matéria e da energia ou à evolução dos seres organizados. Não é menos ativo quando objetiva o homem, seu corpo, sua inteligência, seus movimentos, as funções de seus órgãos, suas reações contra os agentes mórbidos. A contemplação intelectual dos fenômenos naturais é, à primeira vista, muito diferente da contemplação estética, que é própria da arte. Está, entretanto, dela mais próxima que parece. Entre a emoção que domina o pintor e a que absorve o naturalista, à vista das belas formas do mundo vivo, há profunda concordância. Leonardo lhe soube o segredo. Quem poderia dizer se tal não acontecerá ainda?” Timon, médico e poeta do tempo dos céticos, já aconselhava esquecer as especulações filosóficas e seguir o caminho da Natureza. Nada permanece. Na constância de seus desígnios, Heráclito afirmava: “le devenir est l’essence même des choses”. Depois da era científica, as ciências, divididas e subdivididas, criaram outras ciências, e delas lucraram a vida social e a transformação econômica do Universo. A biologia materializou o conhecimento humano, moldando outros aspectos da existência da espécie, que a arte e a psicologia acadêmica tradicional não lograram, sequer, suspeitar.

A obra médica de nossos dias, toda impregnada de espírito científico no estudo ou na aplicação, considerou menos os aspectos espirituais da cena viva; mas, sendo a medicina a ciência do homem, deve encará-la na plenitude de seus valores biopsicológicos, integrando-se, como quer Jaspers, “na compreensão estática e genética da moléstia”. E, se a ciência nos permite conhecer o ser humano, a arte bendita, incomparável na visão de seus horizontes, ensinará os mágicos poderes de atingir as baldas sombrias da personalidade.

Rio, 1954

(Paisagem do outono, 1960)


* Médico, professor de Medicina, escritor e político, membro da Academia Brasileira de Letras.  

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