sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Natal “industrializado”


O Natal, como tema literário, sempre foi, é e continuará sendo enorme desafio para o escritor que queira escrever algo original e de qualidade sobre o assunto que fuja do lugar-comum, do sentimentalismo meloso e da pieguice. Escrevi isso inúmeras vezes e não me canso de reiterar. Ademais, os melhores textos a respeito, inigualáveis pela poesia, objetividade, beleza e riqueza de detalhes, foram dos evangelistas, notadamente de São Mateus e de São Lucas. Por mais que outros se esforçassem e se esforcem para sequer chegar perto dessas descrições desse tão transcendental acontecimento, desde a Anunciação, até o nascimento, a visitação dos Reis Magos, a fuga para o Egito etc., passam a milhões de anos-luz desses dois inspiradíssimos redatores.

Há tempos que o Natal foi apropriado pelo comércio, o que não é novidade para ninguém. E, para ser comercializado, se tornou, claro, indispensável que se formassem imensas “indústrias” ao seu redor, para produzir, entre tantos outros produtos natalinos, os tais pinheirinhos, as lâmpadas para enfeitar as árvores, os presépios dos mais simples aos mais sofisticados e assim por diante. Isto, sem falar dos presentes e nem da ceia natalina. Não cabe, aqui, avaliar se isso é bom ou é ruim. Nem esta é a minha intenção.

Escritores de reconhecido talento também entraram na onda e “industrializaram” seus textos sobre o tema. Afinal, escrever é sua profissão e é justo que ganhem algum dinheiro com ela, não é mesmo? Produzem, ano após ano, mundo afora, contos, crônicas, romances, poemas e mensagens sobre o Natal sob encomenda, comercializados por gráficas, editoras, jornais e revistas de todos os portes e naturezas e vendidos aos montes nesta época do ano. Com isso, claro, a qualidade (e credibilidade) dos textos via de regra decai (salvo raríssimas exceções), o que é até compreensível e justificável.

Pesquisei, porém, em minha biblioteca, peças literárias alusivas à data máxima da cristandade, em livros de cinco dos meus autores prediletos da Literatura Brasileira, e separei as que mais me sensibilizaram, que partilho, com satisfação, com você, meu fiel leitor. O primeiro texto é este “Soneto de Natal”, de Machado de Assis, já “industrializado” (à sua revelia), mas não na totalidade, porém apenas no último verso, citado amiúde em crônicas e contos etc. e reproduzido, como mensagem natalina, em inúmeros cartões de boas festas que recebi (e que enviei):   


“Um homem – era aquela noite amiga,
noite cristã, berço do Nazareno –
ao relembrar os dias de pequeno,
e a viva dança, e a lépida cantiga,

quis transportar ao verso doce e ameno
as sensações da sua idade antiga,
naquela mesma velha noite amiga,
noite cristã, berço do Nazareno.

Escolhi o soneto... A folha branca
pede-lhe a inspiração, mas, frouxa e manca,
a pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
só lhe saiu este pequeno verso:
’Mudaria o Natal ou mudei eu?’”.


Manuel Bandeira abordou o tema, mas por vias transversas, no texto dele que selecionei. Apenas citou-o incidentalmente, em sua “conversa” com o espelho. Mas enfatizou uma atitude que muitos de nós temos, que é a de identificar a criança que teima em viver em nós enquanto vivemos, sem que tenhamos talento para expressar, com tamanha graça e verdade, essa identificação.

Gosto demais destes “Versos de Natal” do sublime poeta pernambucano:


“Espelho, amigo verdadeiro,
tu refletes as minhas rugas,
os meus cabelos brancos,
os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
mestre do realismo exato e minucioso,
obrigado, obrigado!
Mas se fosses mágico,
penetrarias até o fundo desse homem triste,
descobririas o menino que sustenta esse homem,
o menino que não quer morrer,
que não morrerá senão comigo,
o menino que todos os anos na véspera do Natal
pensa ainda em pôr seus chinelinhos atrás da porta”.
(Livro “Estrela da vida inteira” – Record/Altaya – Rio de Janeiro -  2000).


Outro poema notável, em que o Natal é citado apenas incidentalmente, que nos induz a profundas reflexões, é este “O tempo”, do meu conterrâneo Mário Quintana:


“A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é Natal...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado...
Se me fosse dado um dia outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente
e iria jogando pelo caminho
a casca dourada e inútil das horas...
Seguraria o amor que está à minha frente e diria que o amo...
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo
que, infelizmente, nunca mais voltará”.


Dizem que o último texto que Cecília Meirelles escreveu – ela que morreu em 9 de novembro de 1964, dois dias depois do seu 63° aniversário – foi esta magnífica crônica, intitulada “Natal na Ilha do Nanja”, da qual reproduzo, apenas, um pequeno trecho. Quem quiser lê-la na íntegra (e eu recomendo que o faça), ela está publicada no livro “Quadrante 1”.


“(...) Na Ilha do Nanja é assim. Árvores de Natal não existem por lá. As crianças brincam com pedrinhas, areia, formigas: não sabem que há pistolas, armas nucleares, bombas de 200 megatons. Se soubessem disso, choravam. Lá também ninguém lê histórias em quadrinhos. E tudo é muito mais maravilhoso em sua ingenuidade. Os mortos vêm cantar com os vivos, nas grandes festas, porque Deus imortaliza, reúne e faz deste mundo e de todos os outros uma coisa só: é assim que se pensa na Ilha do Nanja, onde agora se festeja o Natal”. (Editora do Autor – Rio de Janeiro – 1966 – página 169).

Para encerrar estes despretensiosos comentários acerca da “industrialização” do tema, por parte de muitos escritores (bons e ruins, consagrados e anônimos, não importa) nada melhor do que este instigante, irônico e bem-humorado poema de Carlos Drummond de Andrade, intitulado “Natal”, que resume tudo o que escrevi a propósito:


“Menino, peço-te a graça
de não fazer mais um poema
de Natal.
Uns dois ou três, inda passa...
Industrializar o tema,
eis o mal”.


E não é?!

Boa leitura!

O Editor.

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