domingo, 25 de dezembro de 2016

Dom Arns: entre o céu e o inferno


Por José Ribamar Bessa Freire


Diz-que o cardeal dom Arns, enterrado na sexta (16), subiu como um foguete direto para o céu. Bateu na porta. São Pedro abriu, viu a sombra de uma batina vermelha, a casula roxa, o solidéu, a mitra. Com a vista cansada, não conseguiu, porém, identificar seu interlocutor:

Qui estis? - perguntou em latim que, como todo mundo sabe, é a língua do céu. Por via das dúvidas, repetiu na língua de Bob Dylan: Who are you?

Ouviu a resposta:
- Paulo Evaristo Arns, cardeal de São Paulo.
- Quem? - insistiu Pedro - agora em português.
- Xe marangatu, ybaka-porã (*) - retrucou dom Paulo que começou a aprender a língua tupi com Tibiriçá, seu colega na cripta da catedral da Sé morto em 1562.
- É isso que vamos ver. De onde você vem?  
- Je viens du Brésil - disse dom Paulo, por via das dúvidas, na língua da Sorbonne onde obteve seu diploma de letras.


São Pedro interfonou para o chefe da hemeroteca do céu, São Jerônimo, padroeiro dos bibliotecários e pediu que lhe enviasse jornais do Brasil daquele dia. Já com  O Globo na mão, leu a manchete "DOM PAULO EVARISTO ARNS (1921-2016): O 'ARCEBISPO DA ESPERANÇA' SE DESPEDE", seguida do subtítulo: "Influente e ousado, líder católico escreveu sua história de coragem na luta contra a ditadura militar". O porteiro do céu, então, sentenciou, enigmático:
- Perdão, cardeal, mas o senhor é suspeito. Aqui consta que seu salvo-conduto só lhe permite transitar no inferno.
- Mas como? O inferno, eu já conheço. Criei a Pastoral Carcerária em 1970. Percorri os porões da ditadura, peregrinei por quartéis e delegacias, visitei presos políticos torturados, ouvi o choro de Marias e Clarisses, presenciei exílios e muita gente partindo num rabo de foguete, comprovei assassinatos nas prisões de quem tinha fome e sede de justiça, testemunhei cadáveres jogados em valas na periferia de São Paulo. Enfrentei generais. Sofri ameaças e calúnias e até um atentado num acidente de automóvel no Rio, similar ao de Zuzu Angel. Está tudo lá no livro "Brasil Nunca Mais".

São Pedro coçou a cabeça, mas foi inflexível:
- Desculpa. As normas são claras, aqui o senhor não pode entrar. Tem de ficar de quarentena, lá no limbo.
- Por que, se vivi franciscanamente, inspirado em Cristo? Vendi o palácio da Cúria Metropolitana, com o dinheiro construí centros comunitários em bairros da periferia. Lutei contra a injustiça. Dei abrigo aos aflitos, aos sem-teto, aos desempregados. Criei a Pastoral da Moradia, fundei a Pastoral dos Moradores de Rua. Abri a igreja aos movimentos populares, às oposições sindicais. Dialoguei com todas as religiões. Incentivei participação de leigos nas comunidades eclesiais de base. Batalhei em defesa dos direitos humanos. Exijo a presença de meu advogado Dalmo Dallari, vou interpor recurso de apelação.
- Neste caso, o senhor deve voltar ao Brasil, porque os trâmites aqui demoram mais do que processo contra réus do PSDB no STF e nos tribunais de São Paulo, Minas e Curitiba - disse Pedro.
- Não, pelo amor de Deus, o Brasil não! Lá está pior do que o inferno. O país está em frangalhos. Leia a delação premiada do Cláudio Filho, diretor de relações institucionais da Odebrecht, cuja cópia me foi enviada por Clélia, uma paroquiana. Quadrilhas de bandidos engravatados se apoderaram dos aparelhos de estado, usando funcionários, recursos e espaços públicos para receber propinas. As cinco etapas do processo estão descritas, com os nomes de cada um. Só o presidente Temer aparece 43 vezes. O organograma da corrupção está todo documentado.


Pedro hesitou, mas continuou ouvindo Paulo que engatilhou um data venia:
- Simão Pedro, filho de Jonas, recebeu as chaves do céu. Diga-me, então, para que possa me defender: por que as portas do paraíso estão fechadas para mim? O senhor não pode fazer como o juiz Sérgio Moro, que em alguns casos não revela ao réu o crime do qual está sendo acusado.

Pedro abriu o jogo:
- É que o fato de o senhor ter sido elogiado pelo jornal O GLOBO, levanta sérias suspeitas. Depois que esse jornal noticiou a morte do cardeal do Rio de Janeiro, em 2012, descobrimos que o que sobre ele foi escrito era pura cascata, contrariava os fatos. Por isso, precisamos agora checar o noticiário.


Foi aí que dom Paulo Arns desfez o equívoco. Explicou que no Brasil era preciso ler os jornais nas entrelinhas, com um pé atrás, para não se deixar enganar por artifícios tipográficos, confundindo a verdade com o tamanho da letra. "É preciso desconfiar de quem apoiou a ditadura quando elogia os que lutaram contra ela. Com a edição do obituário, o jornal quer apagar sua cumplicidade com o terrorismo de estado, limpar sua barra. A mensagem que eles querem passar com essa cobertura não é sobre mim, é sobre eles. O tratamento que me deram sempre foi outro - disse dom Paulo, ilustrando com um episódio.

Contou que durante ditadura foi procurado por emissários de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, então Superintendente da Rede Globo, cujo filho fora expulso do colégio Santa Cruz em São Paulo, por exibir filmes pornôs aos colegas. Eles iam interceder em favor do Boninho, mas o cardeal, antes de ouvi-los, se adiantou ironizando:
– Já imagino porque vocês estão aqui. Vieram anunciar que meu nome não continua mais vetado na TV Globo, que censura até as missas da Semana Santa e a cerimônia de Lava-Pés, se sou eu que celebro.

Pedro, que ouvira o relato com atenção, pediu, dessa vez, o acesso à coleção completa do Globo. Pesquisou todas as edições e comprovou que, além do silêncio, dom Paulo sofrera campanha sistemática daquele jornal, que usou para isso seus articulistas, entre eles o próprio cardeal Eugênio Salles. Tudo foi confirmado na hora pelo jornalista Villas-Boas Correa, que acabara de chegar e pegou carona entrando com o cardeal no paraíso.

Foi assim que as portas do céu se abriram para dom Paulo, que lá está sentado à esquerda de Deus Pai, ao lado de Zilda Arns e de dois bispos também interditados pelo jornal, dom Helder e dom Valdir, que de Calheiros só tem o sobrenome. Na foto do céu publicada nas redes sociais, não aparecem nem dom Agnelo Rossi, nem dom Eugênio Salles.

* Jornalista, professor e historiador.


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