domingo, 27 de novembro de 2016

Almoços de domingo

 

* Por Laís de Castro



Todo domingo era a mesma coisa. Minha avó do lado de cá da praça atravessava e ia falar com a minha avó do lado de lá da praça, vamos juntar as panelas, é uma delícia benigna, ninguém fica triste com ninguém e, uma levava as panelas ou travessas para a casa da outra e comia todo mundo junto era assim que funcionava. O padre, claro, era o convidado de honra, que almoço de domingo sem padre, sem pão e sem maionese, não é almoço de domingo. Nós éramos os menores e ficávamos observando os maiores, eles faziam tudo sempre igual, repetiam os mesmos gestos, os mesmos trejeitos, os mesmos escorregões.

Minha avó do lado de cá da praça, depois que sentava à mesa, fazia uns dez nomes-do-padre, até o padre resolver enxergar aquele gesto religioso como se aquilo fosse a senha para ela subir mais um degrau em direção ao céu. Padre Gilberto era gordo, vermelho, bolachudo e mais distraído que gato caçando mosquito, para azar da minha avó, ele demorava a ver o nome do padre, ela ficava lá repetindo, parecia que tinha entrado em surto. Mas, quando ele via, a reza já podia ir adiante, como ia. Meu avô tinha mania de usar roupa de professor, ele era professor mesmo, punha aquele jaleco branco como anúncio de Omo, com a gravata borboleta e quase sempre se fazia ouvir, contava uma história, até cantar cantava, cantigas bem antigas “mostraram-me um dia, na roça cantando, mestiça formosa...”. Quando ele estava comendo cofiava a barba que não tinha com a mão esquerda e depois que acabava, tirava grandes cochilos ali fingindo que estava acordado e se a gente dizia o vovô está dormindo corria risco de vida. Um dos meus tios tinha mania de encher os copos de água, cada um numa altura e depois ele ia molhando o dedo e tangenciando em torno da boca daqueles copos de cristal meio frouxo e tocava músicas que hoje seriam celestiais aos meus ouvidos velhos e saudosos. Naquele tempo a gente nem aplaudia, nem ouvir direito ouvia e, quanta coisa eu não sabia, nunca imaginaria que aquela música ficaria impregnada no meu cérebro como o som da minha infância.

Era uma festa aquele almoço. Os garotos mais velhos, já na adolescência, hormônios borbulhando à flor da pele, queriam mostrar para as primas – todo garoto que se preza tem tesão pela prima e sonha em comer a professora de história – que eram machos e tomavam um cálice de pinga pura e comiam sanduíche de pimenta. O cálice de pinga era do tamanho de um dedal, mas tomado como num ritual, sob o olhar soberano e magnânimo dos tios e tias, que pareciam entender aquele teatro essencial para o masculino dos meninos. E o sanduíche de pimenta era feito sob supervisão do primo Pedro, come que não arde, rapaz, você é mariquinha ou o que, nem arde, quer ver, experimenta. Não arde mesmo, depois eu soube que pimenta apanhada do pé, antes de curtir arde menos, quanta coisa eu não sabia.

As meninas, por sua vez, excitadas com aquele espetáculo viril, trocavam segredos e riam, com as mãos tapando a boca e falando no ouvido, duas queriam o mesmo primo e elas se dividiam em facções, umas apoiavam uma e outras a outra, primo Carlos combina com a Dinha, porque a Ioiô quer se meter entre eles, ela vai sair perdendo, prima Fininha é que tem razão, escolheu para ela o primo Tico, que é horrível e ninguém quer (esse seria o casal mais feliz da família mais tarde).

A mesa era tosca, pintada de um azul colonial-brega e tinha, em volta de cada pé uma lata de manteiga Aviação cheia de água para as formigas não subirem. Claro que aquela água também ia apodrecendo a mesa e, a cada ano ela ficava um centímetro mais baixa, quem é que se importa com isso é bem melhor do que ter formiga no açúcar e no doce, dizia minha tia solteirona. A mesa estava lá há tanto tempo que parecia plantada no varandão que dava para o quintal, de acabamento de cimento grosso no chão e nas paredes. As vigas que sustentavam o telhado eram de madeira, pareciam dormentes longos, sobre os quais já haviam passado muitos trens. Talvez fossem mesmo, o bisavô era maquinista e tinha uma foto dele na sala de tábuas largas e gastas de tanto lavar, orgulhoso, com a farda de lã pesada azul marinho e botões dourados. 

Naquela varanda almoçavam, todos os domingos, umas 30 pessoas, incluindo as crianças. Falava-se de política, futebol, da vida alheia, de crianças, receitas, doces. Não havia televisão, mas havia o barulho do vento batendo nas folhas das dezenas de árvores do pomar que, embora as casas já fossem na cidade, teimava em sobreviver. O pomar era de verdade. Já a cidade, era uma vila de cerca de cinco mil almas claras e noites escuras, mal iluminadas por lâmpadas avermelhadas, penduradas no alto de postes de trilhos, projetando embaixo uma rodelinha de luz triste, eivada de besouros.

Os dias, sim, eram ensolarados, alegres, felizes, nós não tínhamos mais do que 10 anos e podíamos sair sozinhos de casa, jogar futebol, subir em árvore, roubar goiaba vermelha do quintal do Roberto Querido e caju do quintal do Dr. Hugo! Os dias eram assim. E, aos domingos, tinha aquele almoço.

Lembro o sabor de cada prato, a lazanha, porque diabos havia lazanha naqueles interiores, a infalível maionese, a meia dúzia de frangos assados e recheados de farofa, o arroz branco e o saladão de folhas verdes que horas antes tomavam vento na horta. O tempero da salada vinha numa grande molheira, era óleo de milho com vinagre e sal e olhe lá, naquela época eu nunca tinha visto um azeite de oliva de perto, nem sabia que existia, quanta coisa eu não sabia. Mas como era bom aquele molho ralo, que levava sal e açúcar e um pouco de alecrim, eu via minha tia fazer.

Antes do almoço, os mais velhos tinham direito a caipirinha e desfrutavam de seu direito com um certo exagero. O Menossi tomava vinho. Taí. Talvez a existência deste feroz tio italiano, marido de uma das tias, explique a presença da lazanha naquele fim de mundo. Refrigerantes eram caros e raros, mas laranjada, melada de açúcar, era farta e barata.

A varanda era enorme, generosa, tem pra todo mundo, sombreada, mas se chovesse, a gente já sabia que era picotada de goteiras. Quanta coisa a gente sabia que os meninos e meninas da cidade grande jamais saberão! A água das goteiras nem faria mal, contudo eu não me lembro de ter almoçado lá nem um dia sem o sol acariciando a nossa pele, nós, os menores, que ganhávamos o prato primeiro e podíamos comer na escada que dava para o pátio, com o prato no colo, não derruba, menino que te dou um tabefe, já varri esta escada dez vezes hoje. As galinhas é que gostavam, porque eles iam juntando aquela farofa, arroz e o resto da porcariada e depois jogavam no galinheiro.  Do lado direito tinha uma parreira de uvas vermelhas, daquelas bem comuns e do lado esquerdo havia uma mangueira generosa em oferecer mangas coquinho, aquela redondinha que parece um coco mesmo. Havia outras mangueiras por lá, manga-família, manga-bourbon, manga comum, aquela cheia de fibras.

Outra coisa que a gente nunca tinha ouvido falar na vida era a tal de manga-haden, que os japoneses inventariam uns 30 anos depois, com centenas de casamentos de espécies de mangueiras, enxertos bem e mal sucedidos como os das pessoas. Quanta coisa eu não sabia. No meio tinha, e ainda tem, quem quiser acredite, duas jabuticabeiras rainhas, frondosas e donas do quintal. No seu tronco, duas garrafas de cabeça para baixo com uma rolha mal furada, pingavam gotas de água permanentemente. Jabuticabeiras gostam de água para dar mais frutos. Quanta coisa eu sabia!

Aquele era o tempo da delicadeza, falava-se alto mas sem ofensas, as crianças tomavam palmadas mas nunca surras, ficavam de castigo no quarto, mas nunca ajoelhadas no milho. Uma das avós, a matriarcona, vivia chorando pelos motivo mais tolos. A outra avó, transplantada da cidade para o interior, ainda parecia fora de seu ambiente natural, mas fazia um esforço visível – e muitas vezes frustrado – para se adaptar. Uma tinha uns óculos foscos e velhos, a outra tinha uns óculos de cristal límpido, mas nenhuma tinha maldade na alma, nem dinheiro na conta bancária, que nem banco tinha lá. Eram pessoas simples, de boas famílias, gente honesta, que trabalhava e vivia do fruto de seu trabalho, nunca exploraram  nem humilharam ninguém, nunca roubaram e nem maltrataram os mais fracos e oprimidos. Digo mais, porque todos ali eram também meio fracos e oprimidos.

Naqueles almoços, no entanto, todos eram fortes, livres e felizes. Naqueles almoços que iam terminando não sei bem como, as meninas saíam para trocar seus segredos em paz, os mais velhos saíam para dormir, o padre dormia na mesa mesmo, as mulheres lavavam a louça e os adolescentes talvez fossem acertar suas necessidades hormonais em outras plagas. O sol ia se tornando tépido e as sombras se alongavam, poucos comiam as compotas de abóbora, de mamão verde e as goiabadas cascão em colheradas que vinham para a mesa já lá pelas 4 da tarde. E poucos tomavam o café adoçado no bule, de matar diabético. Era uma preguiça tão linda, tão pura, tão sonora, e tão densa, que se poderia cortar com faca.

Nós, os menores, íamos correr na rua, brincar de esconde-esconde, barra-manteiga-da-fuça-da-nega, amarelinha e jogar queimada ou futebol, ah, o futebol amado, já falei dele, mas nunca é demais repetir, eu pegava no gol, e bem.

Depois, exaustos, meninas e meninos se deitavam no chão da varanda, para contar terrificantes histórias de medo, sabe que quando desenterraram a filha da dona Silvéria, o cabelo dela tinha crescido mais de um palmo, olha, quando foram lá no cemitério pintar o muro ouviram uns gemidos, mentirosa, meu pai que falou, mentiroso é você, tudo acabava numa boa briga, gritaria infantil, besta é você. Mas tinha que ser antes que anoitecesse, para a gente ter tempo de esquecer e dormir o sono dos justos, de crianças tranqüilas, com sonhos leves. Bem, haveria a sessão de histórias se não fosse tempo de jabuticabas. Se fosse, aquela reunião infanto-literária ficava para outro dia, que o alto da jabuticabeira era nossa estrada.


* Jornalista e escritora.

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