sábado, 22 de outubro de 2016

Sujeito Zero (14)


* Por Sergio Vilas Boas



Seu Edmundo tomou o ônibus da linha 2832 lotado e sacolejante. Sentia estranhas vertigens, dor (leve) na altura da nuca escorrendo pela espinha, vértebra por vérte­bra. Encostou a cabeça no vidro da janela, mas as vibrações o enjoavam. O falatório dos passageiros só aumentava o desconforto.

Fecha lentamente a cortina dos olhos e equilibra a cabeça, preocupado em manter a boca fechada, pois certamente irá cochilar. Não quer, antes de tudo, ser alvo de chacota para os adolescentes e estudantes que fazem uma algazarra dos diabos dentro do ônibus.

Ouve passageiros mais atrás reclamarem do motorista a cada parada brusca. Transporta animais? Independentemente disso, a entrada de mais pessoas significa forçar as de trás a se contorcerem para que a porta hidráulica possa se abrir. Os degraus estão apinhados de gente.

A cobradora, personagem explorada pelo Fantástico precisamente por ser a primeira no país a entrar para aquela profissão majoritariamente masculina, é uma senhora em idade de descansar e ajudar a criar os netos. Ela não se enten­de com o motorista. A tensão aumenta. Que tensão? Convenhamos: meu Sujeito Zero dispensa tensões.

Seu Edmundo pressente os acontecimentos e desiste de conter sua curiosidade. A voz do motorista tira o cérebro do pai de Alma de um estado de frouxidão generalizada. De vez em quando, beliscões no peito, intermitentes, suspeitos, infundem-lhe maus pres­ságios.

Desabotoa a gola da camisa embora nada facilite a respiração. Quer, entretanto, aliviar a consciência sobre as atitudes que não toma em relação ao coração e aos pulmões. Ou até, quem sabe, comparecer à consulta médica marcada com muita antecedência. Nota a saturação ao redor, mesmo de olhos fechados, pois não precisa abri-los.

Se não fosse tão alheio, poderia comprar um carro, um VW/Brasília 1979, como o de Vicente, e nunca mais enfrentar a maldita linha 2832, a única que atendia ao Jardim Nova York. Os coletivos da 2832 demoravam a passar e, quando vinham, só podiam estar lotados. Por outro lado, como comprar carro em um país que inventa moedas que não valem nada?

Ele não aprendeu a dirigir. Acho que nem considerou a hipótese. Recusou-se terminantemente a fincar pé no seu século, a demarcar sua independência. Até o mais ingênuo ou o mais desgraçado dos mortais associa automóvel a individualidade. Ele, não. Ele falava de carro como quem fala de um presídio. A pobreza sempre pôde ser opcional ou provocada. Mas não ambicionar certas coisas, Alma, não sei, não. Isso me faz pensar nele como um repolho ou um passarinho.

Costumo dar razão a quem contraria a naturalidade de obras impensadas. Há mesmo muitas implicações em comandar uma máquina locomotora. Para uma solução, criam-se milhares de problemas.

Além disso, dirigir exige pré-requisitos como determinação, paciência, autonomia de pensamento e disciplina, atributos tão importantes quanto a decisão de virar à esquerda ou à direita; subir ou descer; parar, prosseguir.

Os carros transportam o fluxo de todos nós: o perigo, a coragem, os sobressaltos, o destino, a volta, a reviravolta, a auto-estima. Com o “bônus” de se poder ir para frente e para trás, capacidade que a realidade só comporta na imaginação.

Posso avançar ou voltar homepages, mudar endereços eletrônicos instantaneamente. Mas é diferente. Não existe o sagrado movimento físico do automóvel. Pilotar um computador implica manter a bunda no mesmo lugar.

- Das Graças, desarrolha a porta, porra. (Berra o motorista com seu vozeirão rudimentar).

A cobradora Das Graças luta para manter a porta fechada. Que velha persistente. A porta traseira está a seu alcance, assim como estão ao alcance da porta os que viajam nos degraus como pombos sobre a rede elétrica. Alguns deviam estar apenas aguardando o momento de fugir assim que a porta abrir. Ou a abrirão com as próprias mãos, à força, a fim de sair sem pagar. Não existe esse negócio de escrúpulo.

Das Graças sabe, de ouvir dizer, que os estudantes ainda por cima fazem  pouco dela ao lhe darem o cano. O próprio Seu Edmundo testemunhou essas obscenidades muitas vezes. Um garoto albino, por exemplo, uma vez botou a mão na braguilha e disse: “Aqui, oh! Foda-se, velhota do Fantástico”.

A irresponsável provocação era dirigida a uma mulher en­rugada, magra, exausta, trabalhando em atividade que pouco ajuda a depurar o espírito. Das Graças não pôde olhar. Acostumara-se às recorrências do episódio. Alguns passageiros disfarçam, outros gargalham. Poucos balançam a cabeça em sinal de repúdio. Intolerante com aquele desassossego, Seu Edmundo se revolta. Por dentro ele devia ser um revoltado. Todo indivíduo é, na verdade, dependendo da imagem que tem e do que observa.

Os beliscões no peito e a falta de ar sossegaram.


* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.



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