quarta-feira, 22 de junho de 2016

Qual é o seu tamanho?

* Por Mara Narciso


Aos dez anos entrei no mundo de Monteiro Lobato pela porta de frente. Usei a “Chave do tamanho” para abri-la. Foi uma entrada fulgurante, que me obrigou a ler todos os seus livros infantis. Não imagino uma única criança daquela idade que não se apaixonasse pelo enredo do gênio criador de Emília, Narizinho, Pedrinho e o Sítio do Picapau Amarelo. Foi publicado em 1942 e o Brasil entrava na Segunda Guerra Mundial. Para acabar com ela, Emília desligou a chave do tamanho. Com os humanos em miniatura, os artefatos assassinos não tinham serventia, o que levou ao fim do malfadado genocídio. Racista? É preciso amputar parte da obra de Lobato? Não sejam loucos. Cada época tem sua visão de mundo. Olhar o passado com olhos de hoje, sem nenhuma condescendência, é ser cruel.

Aos três anos, subi no telhado de minha casa escalando pela escada do pedreiro, e na descida não tive pernas para alcançar o degrau de baixo. Imagem febril dos sentimentos de medo e deslumbramento. Desci pelos braços fortes da empregada, com minha mãe vigiando lá de baixo. O corredor da casa da minha avó Du, no centro da cidade, era interminável, longuíssimo, de ladrilhos hidráulicos. Lá pelo final tinha uma pequena pia com sabonete, geralmente cor-de-rosa e uma toalha grudada num prego. Esticada e na ponta dos pés era possível molhar as pontinhas dos dedos. Depois, quase de repente, me dei conta que a pia tinha abaixado, e dava na minha cintura. O quintal cimentado também era quase uma floresta, com abacateiro, goiabeira, ameixeira e umbuzeiro. Só dava umbu doce, único no mundo. Subir em seus galhos era como pegar um foguete para a lua, tantas eram as possibilidades da viagem. Um dia, o quarador que era quase do tamanho de um campo de peteca, ficou inesperadamente menor. A casa tinha um respeitável pé-direito, e continua alta.

A Praça de Esportes exibia uma piscina semi-olímpica. Quando o professor de natação, Sabu, após três meses de aulas, vendo meu receio de entrar na água sem a tábua e, enfim nadar, coisa que as outras meninas já faziam, me pegou e jogou no meio da piscina. Eu, aos sete anos, me senti subitamente poderosa, ainda que menos que uma formiga dentro de uma xícara de leite açucarado, e nadei até a margem. Ficar ciente de saber nadar foi como descobrir que sabia ler. Algumas vezes precisei de estímulos fortes para avançar. Os anos correram; a piscina não encolheu, mas minha coragem às vezes titubeia.

Nos anos pares, em julho, tinha a Exposição Agropecuária de Montes Claros que, há anos passou a ser anual. A lembrança daquela época me deixa leve como um balão cheio de gás hélio, pronta pra subir ao céu. Pequena, perdida na multidão, sentia-me importante, pois meu tio Zé, José Geraldo Mendonça, todos os anos montava um stand da sua Serralheria Mendonça, e lá podíamos descansar. Piso de terra, sem iluminação, a exposição com seu cheiro característico de cana moída de ração para o gado, só funcionava até as 18 h. Em todos os momentos, era fácil me perder na multidão, ainda que a cidade tivesse menos gente. Para as crianças, o clímax da festa eram a esquadrilha da fumaça e o rodeio. Não sabíamos que os animais eram torturados. Pensávamos que eram bichos selvagens e os peões destemidos. Ver a festa acontecer dentro do grande círculo gramado era uma impossibilidade da baixa estatura resolvida com uma dupla escada de ferro providenciada pelo nosso tio Zé. Subíamos até o topo e ficávamos grandes, podendo ver o outro lado do mundo, inclusive os paraquedistas milagrosamente acertando o alvo. Numa certa hora, o narrador do rodeio dizia assim: “cutuca, Caixeta, cutuca, Caixeta, ê nego duro!”, a cada edição. Nunca esquecerei.

Na infância, as coisas eram gigantes, e escalávamos alturas, paredes dos prédios que morávamos, até pelo lado de fora, ou os imensos escorregadores da Praça de Esportes. Sem esses riscos, não sei se as lembranças dessas imensidões seriam tão intensas. Vivemos emoções vivíssimas, escapamos e posso dizer que, dos 60 giros do mundo ao redor do sol, até agora, todos valeram a pena, os da infância mais, apesar das restrições. O mundo é grande, mas a imaginação pode ir além, especialmente se soubermos fantasiar juntos. Na maturidade, menos invenção criativa, mas, enquanto houver memória, queremos vida.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



2 comentários:

  1. Que sejamos sempre do tamanho dos nossos mais acalentados sonhos. Abraços, Mara.

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  2. Estou precisando voltar a sonhar. Obrigada pela atenção, Marcelo!

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