sábado, 25 de junho de 2016

O frade estrangeiro


* Por Carlos de Laet


O que mais particularmente nos interessa na vida de Vieira, é, senhores, o santo amor que sempre dedicou à catequese e à liberdade dos índios. Os brancos efetuavam pelo âmago do país correrias em que aprisionavam e reduziam a cativeiro os prófugos selvagens. Arrancavam-lhes as mulheres e as filhas, matavam as crianças, e dos homens válidos faziam, à força de pancadas, servos para os trabalhos rurais. Era a escravidão debaixo da forma mais odiosa. A nossa história colonial está cheia desses horríveis atentados, eterna vergonha pela intrépida iniciativa dos nossos avós. Pois bem, senhores, foi contra esta ordem de coisas que se ergueram os jesuítas e à frente deles o famoso Vieira.

Sabeis qual a magnitude da sua obra? Que no-lo diga um dos seus mais conceituadas biógrafos. Depois de citar os missionários que Vieira distribuiu pelas diversas estâncias ou aldeias, explica ele:

“Estes são os filhos de Santo Inácio, que de dois em dois, como os discípulos de Cristo, se apostaram a levar, por aquela inculta região e barbaridade cega, os resplendores da doutrina e da fé. Depois, pelas ocorrências do tempo, teve, em parte, alguma mudança este sistema. O espaço desta campanha de norte a sul (aqui chamo, senhores, vossa atenção) é de mais de quatrocentas léguas por costa; as cristandades e aldeias que nelas se contavam, eram cinqüenta e quatro; as almas, mais de duzentas mil. Não se contém nesta resenha com estância determinada, porque queria estar em todas, o capitão e cabo de todos, o padre Antônio Vieira; porque, disposto primeiro o seu exército para a parte do norte, isto é, do Maranhão até o rio dos Amazonas, reserva-se para passar ao sul até a Fortaleza do Ceará, que são os dois termos do Estado, e ainda revolvia no ânimo mais comprida jornada.”

(André de Barros, Vida do padre Antônio Vieira, página 117 da edição lisbonense de 1858.)

Eu vos pergunto, senhores, onde atualmente os planos de civilização dos indígenas, os quais com este se possam comparar? O nativismo, que tão vesgos olhos lança aos estrangeiros, nossos auxiliares em religião, deveria olhar para isto e chamar a si a magna tarefa da catequese. Não é lógico que, sendo para ele essencial requisito o haver nascido no Brasil, à sua triste sorte abandone tamanho número de brasileiros natos, de que, pelo menos, se poderiam fazer magníficos eleitores, soberbos oradores de meetings e até ministros do Supremo Tribunal.

E os srs. positivistas, também, por que não se entregam a essa nobre missão? S. Francisco Xavier e S. Inácio de Loiola figuram no calendário de Augusto Comte, a 22 de S. Paulo, que é o sexto mês do ano... O que vemos, porém, é que os missionários dessa grei, em vez de se atirarem às privações, às intempéries, aos perigos, como o pregadores católicos, fazem questão de dinheiro para se estabelecerem em uma basílica, e com pingue dotação garantida. Eu bem quisera contemplar o bispo positivista do Rio, sozinho, ou com dois ou três companheiros, a trabalhar pela catequese nas florestas de Goiás ou Mato Grosso. Eu sentiria que de suas palavras não pudesse brotar a luz do Evangelho, mas em todo o caso lhe respeitaria a sinceridade... Tal, porém, não sucederá, senhores; os propagandistas de comtismo preferem ir para a capital da França, Paris, centro de todas as mundanidades e prazeres.

E já que tocamos neste assunto da catequese, preciso é reconhecermos que o não muito que existe, absolutamente não tem cunho nativista, porque é fruto dos esforços e da corajosa dedicação de frades estrangeiros.

São dominicanos estrangeiros os que ora catequizam nas margens do Araguaia, em territórios do Pará e de Goiás. Fundaram ali a colônia da Conceição do Araguaia, núcleo de mais de quatro mil pessoas; mantêm dois colégios, um internato de cinqüenta meninas, e um externato para número indeterminado de meninas, dirigido este pelas irmãs Dominicanas, que ali são mestras e exemplares de recato feminil.

Estrangeiros também são os Salesianos que trabalham em Mato Grosso. Ainda hoje, neste mesmo salão do Círculo, mostraram-me uma fotografia de catecúmenos mato-grossenses. No meio deles estava o catequista, não um positivista de fraque, mas um homem de batina, de fisionomia calma, plácida, com a serenidade que dá a consciência do dever, e tendo ao peito a sua, a nossa Cruz a Cruz, seu e nosso emblema, seu e nosso estandarte, seu e nosso programa.

 ***                           

Prossigamos, porém... A mais comprida jornada, de que falava André de Barros nas palavras que vos li, não chegou infelizmente a realizar-se. Proibidas que foram as entradas livres, enfureceram-se os colonos e arderam em fúria contra os jesuítas.

Entradas livres! Notai bem, com que artifícios de linguagem sabe o demônio colorir as suas negras idéias. O que o colono do Maranhão pretendia, era isto: fazer entradas livres. O jesuíta empecia-lhes esta liberdade... Logo era o jesuíta o inimigo da liberdade, e elemento antiliberal e abominado. Considerai, porém, que a entrada livre era a incursão em procura de misérrimos escravizandos; era a lascívia a pascer-se nas mulheres, era a ferocidade a cevar-se nos homens. O que eles queriam, esses colonos do Maranhão, era a liberdade de entrar abusivamente pela propriedade e pela segurança dos outros.

***

Não podendo, portanto, os do Maranhão, tolerar as represas que lhes punha Antônio Vieira à cobiça e à incontinência, cercaram os padres no seu colégio; tiraram-nos de lá no meio de apodos e injúrias; arrastaram-nos pelas ruas e obrigaram-nos a embarcar sem o conforto que exigiam a dignidade sacerdotal, os muitos serviços que tais homens tinham prestado ao Brasil. Senhores, tudo isto nos parece cruel, selvagem, absurdamente bestial; mas outra não é, através dos séculos, a longa história de apostolado católico. E, se dispostos vos achardes a um movimento de orgulho, acreditando viver em época de maior tolerância, lembrai-vos do que entre nós sucedeu, há dias, quando monges veneráveis pelo seu saber e pelas suas virtudes foram coagidos, de noite, e sob a iminência da morte, a deixar o seu cenóbio, asilando-se à sombra protetora do palácio arquiepiscopal. Hoje, como sempre, a liberdade é o mote, é o pretexto, é a falaciosa divisa, mas a realidade é a perseguição contra os que, desbravando os caminhos de Deus, encontram e têm que desalojar a serpe do interesse.

Não acompanharei, senhores, o padre Vieira em todos os incidentes da sua longa existência. Para isto fora mister não uma, porém muitas conferências. O que fica dito, é o essencial, e aqui não posso senão esflorar os assuntos, receoso de fatigar-vos.

(Conferência pronunciada a 22-5-1903, in Páginas escolhidas, por João Ribeiro, tomo I, 1906.)


* Jornalista, professor e poeta, membro da Academia Brasileira de Letras.

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