quarta-feira, 29 de junho de 2016

Invasão da privacidade de Lampião, o Rei do Cangaço

* Por Mara Narciso


A internet nos joga imagens que chegam de mau-jeito. No Facebook, pode-se deparar com um carro vermelho, parecendo esportivo, e olhando melhor, vê-se que é um carro sem capota, rasgado num desastre, com cinco passageiros decapitados. Mas boas coisas também chegam de forma inesperada. Achei uma relíquia, um filme de 1936/37, sem áudio, com duração de 14 minutos, gravado por Benjamin Abrahão, retratando Lampião, o Rei do Cangaço em carne e osso. Hoje é Cult, mas naquela época os cangaceiros barbarizaram por todo o nordeste, exceto Piauí e Maranhão. Ver a sua rotina, de há quase 80 anos, foi despir um mito.

Na caatinga nordestina, os cangaceiros, juntamente com suas mulheres, desfilam diante da câmera, um objeto raro. Aquela turma, que imaginamos selvagem, sai-se bem. O filme, sequestrado na época de Getúlio Vargas, reapareceu, sendo restaurado, sofrendo cortes e acréscimos. Qual seria a motivação daqueles homens e mulheres? Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, porque iluminava a noite com o clarão dos tiros, era chamado de “Capitão” pelos colegas. Começou, junto com dois irmãos, vingando seu pai, e entrou para a história. Os cangaceiros seria uma quadrilha de frios criminosos ou corajosos justiceiros? Invadiam cidades e fazendas, saqueando, matando, estuprando, torturando, mutilando, levando tudo. Caso quisessem se explicar, o que diriam? Justificariam seus crimes?

Na preciosa película, os cangaceiros se mostram nem tímidos, nem exibicionistas, mas, pela época, até desinibidos, pois nenhum deles mostrou-se apreensivo. Considerando-se os precários recursos, ainda que seguissem roteiro pré-estabelecido, o resultado envolve, seduz, encanta.

Homens e mulheres, brancos em sua maioria, de cabelos grandes, são jovens e seu labor é roubar. A paisagem tórrida, com suas escassas árvores e muito vento, poeira e cactos, ambientava gente rude, porém, com pitadas de civilização plantada no meio do mato. A ação começa com um roubo de gado, depois, o acampamento, onde os personagens, ora andando, ora sentados lado a lado, flertam com a câmera. Diante da seca, a rotina de pegar água do rio, em potes, é relevante, assim como a visão de um homem bebendo água em grandes goles, sem, no entanto, encostar a boca no cantil. O comportamento do grupo mostra hierarquia, e parece estar em constante alerta, como se tivesse de fugir a qualquer momento.

Ao todo não tem 50 pessoas, e mesmo em lugar quente, usam roupas pesadas para se proteger do sol e dos espinhos. As mulheres têm importância e são respeitadas. Aparecem de vestido ou de roupa de couro, como os homens, quando em traje de viagem. Uma delas recebe vários cordões, provavelmente de ouro, produto de roubo. Vai colocando-os no pescoço e por fim, orgulhosa, põe um chapéu. Cangaceiros cuidam da aparência, olham-se no espelho, penteiam-se, passam perfume, lavam roupas e o cachorro. Exibem-se para o futuro, como se, com o olhar, pudessem falar para a posteridade, antecipando a importância, que de fato adquiririam. Para isso, mostram-se lendo jornal ou livro, escrevendo, olhando em binóculo, contando dinheiro, observando um cartaz. São alegres, divertem-se comendo, dançando, rindo, bebendo cachaça, fumando, caçando, mostrando armas. Parecem brincar, mas impõem respeito pelo poder da força. Cuidam do espírito, ajoelhados rezam compungidos e se persignam. Trabalham descarnando boi, montando barraca, fazendo colchão com ramos, cozinhando. Quando passam em fila a pé ou a cavalo diante da câmera, olham para quem os filma.

Penetrar no passado autêntico, quase virgem, dos cangaceiros, é como espiar algo secreto, que não poderia ser visto. Ainda que estivessem posando, soa estranha esta súbita intimidade com Virgulino Ferreira da Silva (1898/1938), alfabetizado e usuário de óculos, ambos, incomuns naquelas bandas e a sua Maria Gomes de Oliveira, a Maria Bonita. De repente, as cabeças degoladas, arrumadas numa escadaria, batem no espectador como pancada, porque em minutos os criminosos ganharam incauta testemunha que já lhes tem simpatia. É preciso aprender a ser isento, para melhor contar uma história.


*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



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