domingo, 22 de maio de 2016

No jogo da verdade a crítica é criação

* Por Eduardo Portella


A tarefa de deslindamento crítico consiste num processamento ideológico, corresponde a um interminável esforço de compreensão da verdade. Compreender a verdade é localizar-se no interior do seu jogo e acompanhar a sua dinâmica interna. Assim como a verdade joga para totalizar, a crítica só é criação quando se confunde com o jogo total do mundo, com aquela "fascinação suprema", carregada de sentidos maiores. Essa reflexão arranca de Heráclito, que viu no logos o princípio e o fim de tudo, e que foi - e somente sendo poderia ver - o primeiro dialético consciente do pensamento ocidental. O logos é uma dinâmica de jogo; livre, sem leis nem regras. A temporalidade do logos é o seu jogo. Heráclito assim falou num Fragmento famoso, de nº 52 - a temporalidade do logos é uma criança deslocando pedrinhas para lá e para cá: a vida da criança. O jogo é a própria dinâmica de estruturação da temporalidade. Dele emergem aquelas condições de relacionamento - entre os homens e as coisas, por exemplo - e de manifestação totalizadora da verdade.

Modernamente Johan Huizinga conduziu essa investigação para o âmbito das descrições culturais. Ao lado do Homo sapiens, e ocupando um esparço bastante mais amplo que o do Homo faber, ele colocou o Homo ludens. Acentuando o caráter lúdico da cultura e surpreendendo no jogo a fonte e o impulso do avanço civilizatório, Huizinga autonomiza a noção de jogo, conferindo-lhe o status de um macro-modelo por vezes absorvente e duvidoso. Em que pese essa perigosa expansão conceitual, o seu obstinado esforço teórico guarda o mérito de haver contribuído decisivamente para recuperar a positividade, a seriedade do jogo. Para além do racional e do irracional, da lucidez e da loucura, as funções lúdicas instauram o mito e a poesia. O jogo é, como afirmou Eugen Fink, ligando Heráclito ao pensamento de hoje, o símbolo do mundo.

O jogo do mundo e o jogo da verdade se implicam reciprocamente, tanto mais que o problema da verdade se coloca a partir de um movimento histórico, e é dentro desse movimento, condicionado pela sua dinâmica fundadora, que ele exibe diferentes faces. Para compreendê-las é necessário escalar os degraus de um equacionamento contraditório, onde a interpretação metafísica vai sendo progressivamente aberta pelas figuras do homem e da história. Isto significa uma mudança radical no quadro da tradição, na maneira de pensar do Ocidente. A estrutura tradicional da verdade era sustentada por um pacto de conformidade entre o juízo e o seu objeto, a coisa julgada, a realidade. A ordem interna que referendava este acordo excluía a contradição. Mesmo transposto o enclausuramento medieval, a reflexão transcendental de Kant insistia na adaequatio rei ad intellectum. Permanecia a oposição entre verdade e erro. A verdade continuava uma relação isomórfica tal qual; e por isso mesmo, degradava-se.

Como se estruturava essa verdade tradicional, fundada na lógica e na adequação? O relacionamento lógico é pré-requisito da adequação. E ele exige apenas a compatibilidade dos elementos da síntese judicativa. No exemplo "o círculo e quadrado" o que predomina é uma ordem de compatibilidade interna. Na adequação, necessário se torna que os elementos não se excluam e que, correspondendo à realidade, mantenham o compromisso instrumental e pragmático. A formulação tradicional, alternando entre um ou outro nível, renunciava à totalização. Talvez ignorando que um acordo deste tipo - tal qual - depende sempre das condições específicas do sujeito que julga e do objeto julgado.

Qualquer que seja a natureza da verdade e o seu lugar, ela mantém-se irreversivelmente ligada ao homem. Até a estruturação metafísica depende do homem; é ele quem realiza a verdade historicamente. O homem é passagem obrigatória na curva da verdade lógica de adequação para a verdade originária de revelação. Agora o revelador respeita, preserva a diferença do objeto que julga porque a noção de verdade pressupõe e exige a interpretação do homem.

Evidentemente a manifestação da verdade não é estática mas histórica. Ainda mais: o movimento de manifestar-se é a própria historicidade. E assim as criações globais - pensamento, arte, religiosidade - são instâncias de acionamento da manifestação: do homem e da realidade. São formas originárias de instalação da verdade originária. Tanto mais originária quanto mais desdobra-se objetivamente numa transgressão sintática. A linguagem enquanto verdade predicativa abre-se numa relação isomórfica sustentada pelo dualismo significante e significado, da mesma maneira que a linguagem enquanto verdade manifestativa destrói, porque transpõe, este sistema maniqueísta de oposições. E nessa situação limite a arte emerge como modo originário de manifestação da verdade do Ser. Está mais uma vez explicado porque a atitude existencial da poesia distancia-se da do discurso. O entretexto não se dá ao nível da isomorfia tal qual; atua como verdade da existência. Enquanto o discurso pressupõe mundo, história, existência, a poesia os cria. Mas cria dentro das dimensões do discurso. O poeta utiliza a língua, as regras da gramática, sem se deixar aprisionar por elas. Ele é tanto mais poeta quanto menos obediente se mostra as determinações formalizantes.

Assim como a questão da verdade coloca o problema do homem, este só se aprofunda no horizonte problemático da história. Não poderia ser de outra maneira: o homem existe dentro de modalidades fundamentais que são as épocas da história. A ilusão sistêmica ou estruturalóide, de feição predominantemente sincrônica, parece imaginar que, no seu relacionar-se com o mundo e as coisas, o homem pode prescindir da história. Ignora igualmente que a própria constituição do discurso depende de aberturas nitidamente epocais, e chegam a proclamar uma onticidade inevitavelmente hemiplégica. Já podemos entender porque o conhecimento ôntico, toda vez que se apresenta como um corte, é um saber regional, comprometendo aquele pressuposto segundo o qual o existir do homem implica em colocar suas relações dentro de uma estrutura referencial. E é a partir daí que a existência do homem se faz constitutiva da verdade. Isto não quer dizer que o homem seja a fonte formal da verdade. Não. Diz unicamente que as condições de possibilidade da verdade ancoram no espaço do homem. Neste instante o homem encontra na diáspora a sua metáfora natural. Ele é um mediador nato, realizando plenamente a dialética identidade e diferença. Podemos dizer que certo estruturalismo militante falta com a verdade na medida em que retira o homem da estrutura. A rigor é o homem quem se retira, porque transborda os acanhados limites territoriais da estrutura. O que acontece sem a menor periculosidade para ele, já que permanece maior do que o abismo. A própria dicotomia objetividade e subjetividade não esgota o homem; é apenas um pequeno abismo.

Se a verdade é historicamente tópica, como atua no interior do nosso tempo? O questionamento dessa indagação arranca e se apóia num princípio básico: a verdade de nossa existência e a capacidade histórica de tornar a verdade possível. Ao caracterizar a sua identidade e diferença, o homem se assume como revelador histórico da verdade. No decorrer dessa discussão radical, o ser-no-mundo aparece como fundamento ontológico da verdade e podemos compreender a positividade da não-verdade. A não-verdade deixa de ser a parte contrária da verdade, o erro, o falso, para se fazer componente constitutivo da verdade. Para além da concordância, do acordo, da conformidade, verdade e não-verdade se implicam reciprocamente. A não-verdade é a totalidade encoberta, e a constatação do erro pode ser levada a efeito quando a dialética se relaxa e o homem localiza-se em um dos pólos. É nesse nível que se torna possível e fascinante a odisséia da reflexão. "Que nos restará para investigar - são palavras de Heidegger - se admitirmos que sabemos o que significa a concordância de uma enunciação com uma coisa?" Para esse tenso e infatigável empenho de restauração ontológica o que está sendo problematizado é, em última análise, a verdade do Ser. Não é sem razão que Martin Heidegger conclui o seu livro-chave Ser e tempo, dando um novo rumo à questão. Para ele a verdade originária se gera na abertura do homem. Essa abertura é historicamente elaborada na medida em que as épocas históricas trazem para o homem as condições de possibilidades de relacionamento consigo mesmo e com o seu contorno existencial. A existência humana está originariamente nos dois lados, no da verdade e no da não-verdade. E a verdade mais originária não se localiza na verdade. Aqui se ilumina ainda mais a famosa sentença heideggeriana: "a arte é pôr na obra a verdade". Guimarães Rosa para dizer esse jogo bifronte e múltiplo, que é o jogo do próprio entretexto, instituiu uma terceira dimensão - "a terceira margem do rio"; aí onde a liberdade é possível.

Toda vez que sufocamos a liberdade, comprometemos a essência da verdade. A racionalidade repressiva do Ocidente fez da verdade uma meia verdade, unilateral e arbitrária; e como não existe meia verdade, recolhemos a inverdade. Está perfeitamente claro como, a cada momento, estamos falando do homem e suas criações mais plenas. E compreende-se porque a verdade é preocupação constante em toda reflexão que visa a recolocar o problema da literariedade. O intento semiológico, ao investigar o sentido das representações, consiste em pesquisar concretamente o que quer dizer num discurso, mediante, está claro, a articulação na faixa do sistema de signos. A preocupação ontológica investiga todo o movimento estruturante do sistema de signos; desce ao núcleo dinâmico da experiência poética, à criatividade, lá onde a ideologia impulsiona a verdade. Por isso a crítica é a verdade da ideologia - a crítica que não se confunda com um catálogo de utensílios, capaz de preservar aquela peculiaridade hermenêutica, segundo a qual conhecer e co-nascer. E saiba: somente se conhece nascendo com. Essa crítica ontológica ou poética não é apenas uma linguagem sobre - metalinguagem, como o querem Barthes e seus epígonos - mas uma linguagem com. A aliança criadora do com, ela a realiza em dois níveis. Ao se deixar levar para a própria fonte das possibilidades do entre-texto e daí retirar forças para alçar-se ao estado de criação, e ao reconduzir todas as coisas à poesia, à sua fonte, trazendo para este nível o conjunto de implicações do texto, sejam as elaborações lingüísticas, as oscilações psicológicas ou os movimentos sociais. A primeira dimensão desse empreendimento é determinante porque uma crítica que não é co-natural, ou seja, não é da mesma natureza, será sempre uma meta - aqui sinônimo de passar por fora ou à margem - linguagem. Ao contrário da linguagem sobre, a linguagem com procura ser, ela mesma, uma criação; mas uma criação peculiar, alimentada pela idéia de que não se fala sobre literatura de fora da literatura. No caso de Roland Barthes, faça-se justiça, a qualidade textual do exercício crítico é desmentido da crítica como exclusiva metalinguagem. E parodiando as palavras de Platão, no Livro VII da República "se o nosso olho não fosse solar não poderia ver a luz do sol" - podemos acrescentar: uma crítica não criativa não pode ver a criação. A crítica literária consiste, portanto, em apreender o movimento livre da criação. Por isso a leitura hermenêutica ou poética confunde-se com a própria obra.

A co-naturalidade da crítica deve abranger solidariamente as duas instâncias do com. Será tanto mais abrangente quanto mais projete a sua estrutura dialética. O que acontecerá sempre que desenvolva o seu caráter silético (syn + lego, etimologia que pode ser traduzida com + reunir). Silética é a linguagem que instaura mediações e promove a estruturação dos níveis descritos; o da elevação e o da recondução. Este segundo articula uma redução, não evidentemente no entendimento vulgar de diminuição mas no sentido fenomenológico de reconduzir. Reconduz a criação poética a seu nível, já que ela não se plenifica em todas as suas dimensões porque a luta com o não-ser poeta é constante e interminável. Daí emerge a função redutora do crítico, reconduzindo, fazendo-se o para-si da literatura. O crítico tem muito do filósofo, do pensador, do hermeneuta. No seu deixar ser silético verifica-se um enriquecimento das forças de decisão, de julgamento; julgamento que se alimenta das energias mobilizadas pela redução; syn e lego. Julgar é, portanto, uma decisão no nível da verdade. E a própria palavra crítica concentra todo esse universo, acentuando-se o seu caráter criador por ser, ela mesma, a expressão da verdade originária de revelação ou desvelamento (to alethea). No dinamismo do jogo da verdade a crítica é criação.

(Fundamento da investigação literária, 1974).



* Professor e ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras.

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