quarta-feira, 23 de março de 2016

Na vila


* Por Urda Alice Klueger


(Para S. R. V. S.)


A Vila estava ali – foi-se desenvolvendo ao longo do tempo, uma casa hoje, outra ano que vem, pastos com vacas, carreiros para carroças, morros com velhos brabos, a pedreira do seu Thomé, de onde se tiraram os paralelepípedos para a Rua XV, menino brincando com caminhões de madeira, a casa de comércio, sonhos e energias que circulavam, sílfides e outras crianças que nasciam... A Vila crescia, se esparramava, mandava energias para o entorno, trocava as carroças por automóveis antigos, trocava velhos acordeons por músicas de Roberto Carlos, a descendência do homem da pedreira crescia e se multiplicava como em alguns episódios bíblicos, na casa de comércio se tomava Laranjinha com pão e linguiça nas tardes de preguiça, quando meninas douradas ajudavam a arrumar as prateleiras...

A partir de certo momento, estrangeira que era, vi-me tão envolvida com a Vila como se tivesse sido presa lá por cadeados de tão resistente aço que nunca mais se abriram. Disse: era estrangeira, nunca poderia fazer parte da Vila. Então havia que estar lá do jeito que dava: no silêncio das noites, parada, silenciosa, nos aceiros que ligavam as roças simples aos jardins que tinham as mais magníficas flores, tentando aspirar, na aragem, alguma molécula de perfume que as flores espalhavam sem saber, ou simplesmente sentindo o vibrar da Vila, quieta, imóvel dentro da velha carruagem puxada à lua, sentindo a intensidade daquele lugar que tanto podia, que tudo podia na minha emoção, sentindo o vibrar das energias da Vila, energias que pulsavam na mesma velocidade do meu coração que amava àquela Vila porque lá era o lugar sagrado onde, na caverna sagrada, sílfides de luz existiam e davam sentido ao fato de eu existir.

Também havia outro jeito de estar lá, e era quando dormia e saía vagando dentro dos sonhos. Os sonhos eram mais complexos – na verdade, eram atrozes, porque neles a minha nacionalidade estrangeira não importava, e eu andava pela Vila toda procurando, procurando, porque houvera alguém dentro do meu sono que dissera que o tesouro maior estava lá e eu poderia achá-lo. Noites terríveis eram aquelas, tantas vezes repetidas – afundei os caminhos da Vila com meus pés descalços de sonâmbula, e de todas elas despertei em profundo pranto, por causa da realidade da ausência – a Vila continuava sendo um mistério e um escrínio pejado de coisas maravilhosas, e nada daquilo estava ao meu alcance.

Penso, agora, como pude suportar a alegria do outro dia, tão imensa e maravilhosa era! Até agora custo a entender que aquilo aconteceu mesmo! De repente, eu estava na Vila, no Templo da Vila, lugar sagrado, impunemente sentada ali ao lado de uma das sílfides, e havia um halo dourado contornando tudo e ninguém parecia se importar com a minha condição de estrangeira nem que estivesse sendo recebida por um daqueles seres mágicos que exalavam aromas, como as flores. Mantive-me atenta ao que dizia o sacerdote, mas dentro de mim era tão imensa e intensa a alegria que, repito, não sei como podia suportar! Aquele era um templo de milagres e a magia andava solta, em girândolas coloridas por todos os lados – eu havia chegado à Vila! Dentre outras coisas, a água que se bebia lá era translúcida e brilhante, capaz de matar todas as sedes!

Nossa, que caminhada longa que fora, e talvez nunca mais tenha outra oportunidade como aquela! Mas como valeu a pena!

Blumenau, 06 de Março de 2016.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais três dezenas de livros, entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).



Um comentário:

  1. Imagens extraídas do seu sono de sonâmbula para extasiar o leitor. Fiquei indo e vindo, lendo e relendo frases, quase sem conseguir terminar.

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