terça-feira, 29 de março de 2016

Algumas lembranças de 1964 e uns anos mais


* Por Mouzar Benedito


Vem aí o aniversário do golpe de 1964, e as lembranças que tenho dele não são nada boas.

Em 1964 eu tinha 17 anos e mal entendia o que estava acontecendo, pois vivia à minha custa em São Paulo, e mal conseguia dinheiro para cobrir as despesas básicas. Não tinha tempo para me informar, nem dinheiro para comprar jornais.

Eu estudava à noite, em colégio pago. Naqueles tempos, os colégios públicos eram muito “puxados” para quem tinha que trabalhar e, sendo menor de idade, eu ganhava pouco. Para cobrir as despesas tinha que fazer uma hora extra todos os dias, de segunda a sexta (então, trabalhava nove horas por dia), e sábado (também dia de trabalho normal) às vezes espichava até as 10h da noite, no escritório de um supermercado.

No dia 19 de março daquele ano, realizou-se em São Paulo a “Marcha da Família com Deus, pela Liberdade”, organizada pelo deputado direitista Cunha Bueno e pelo padre estadunidense Patrick Peyton, com apoio do governador Adhemar de Barros, da deputada Conceição da Costa Neves, uma mulher muito mal-falada pela imprensa antes disso, por gente como o líder integralista Plínio Salgado (um dos que discursaram), por setores da Igreja, pela Fiesp e por patrões em geral.

Eu não tinha muita consciência política, mas estranhei que o diretor do supermercado em que eu trabalhava saiu de seção em seção autorizando os empregados a faltarem para ir à “Marcha”. Mas quem fosse tinha que comprovar, indo em bando com os chefes. Felizmente, mesmo sem saber direito o que era, não fui. Era muito atrativa a possibilidade de ganhar uma tarde de folga, mas desconfiava que não era coisa que prestasse, pois esse mesmo diretor nunca foi de fazer bondades.

Dia 31 veio a notícia de que militares, apoiados pelo governador de Minas, Magalhães Pinto, iniciavam uma marcha ao Rio de Janeiro para depor o governo – apesar da capital já ser Brasília, os ministérios ainda funcionavam basicamente lá. Para mim, parecia uma briga entre os governos federal e o mineiro. Depois, aderiram ao golpe os governadores de São Paulo, Adhemar de Barros, e da Guanabara, Carlos Lacerda. Dia 1º de abril, o golpe se consumou. Só aí ouvi alguns trabalhadores mais velhos e experientes falarem do que ele representava.

O que se sucedeu com a tomada do poder pelos militares (com apoio de muitos civis) foi uma barra. Quem supostamente era crítico do regime, dançava no emprego também. Até militares democratas foram mandados para a reserva.

As agruras foram muitas. Em um determinado momento, deram até um poder excepcional aos porteiros de prédio, por exemplo. Muitos deles achavam que mandavam nos moradores, e principalmente nas visitas que recebiam. Tratavam todos como suspeitos, e eram ameaçadores. Se alguém reagisse, bastava uma denúncia tipo “o fulano é comunista” ou “subversivo” pra ele se ferrar de vez.

Falando em denúncia, se quisesse ferrar alguém era só denunciá-lo ao Dops que ele se ferrava, mesmo como mero “suspeito”. E muita gente se aproveitou disso. Gente mau-caráter tem muito hoje, mas já tinha na época também.

Contava-se até uma piada de um sujeito que tinha um vizinho de quem não gostava e o denunciou como comunista. Prenderam o tal vizinho e deram um prêmio ao delator. Ele gostou da história, tinha um desafeto entre os colegas de trabalho e o denunciou também. Prenderam o desafeto e o premiaram de novo. Aí, resolveu denunciar mais um cara, com intenção de ganhar mais uma grana. E o que aconteceu? Foi preso. Motivo: conhecia comunistas demais, devia ser comunista também.

A caça às bruxas não era só por parte dos militares. Empresários, por exemplo, demitiam suspeitos de serem “subversivos”.

Agora, sinto que há mais ódio nas pessoas, e se a história se repetir, a coisa tende a ser bem pior. E com um agravante: naqueles tempos, apesar de todo o aparelho de repressão, um “bagrinho” qualquer, se perseguido em algum estado, podia mudar para outro em que não o conheciam e arrumar emprego normalmente. Quando precisei, alguns anos mais tarde, fiz isso. Os líderes e outros ativistas conhecidos sim, tinham suas fichas policiais espalhadas por todos os órgãos de repressão, o que não era meu caso. Meu grande “crime” foi participar da imprensa alternativa. Imagino como seria hoje: a internet e as redes de informações do governo impossibilitam qualquer tentativa de anonimato num outro lugar. Basta entrar no Google…

Então, pensando nisso, dei uma folheada no meu livro “1968, por aí… Memórias burlescas da ditadura”, publicado pela Publisher Brasil em 2008, e revi algumas coisas que escrevi nele.

Demissão à distância

Em 1977, eu participava de alguns jornais alternativos e passei a ser visado no Sesc, onde trabalhava. Um dia, fui demitido de surpresa. Foi mesmo muito surpreendente porque no Sesc se dizia que o principal trabalho que estava sendo feito pela entidade, naquele momento, eram as feiras de cultura popular, uma coisa que pegou muito bem, e eu participava da equipe que coordenava e executava as atividades. A gente pesquisava em todo o Brasil, fotografava, comprava material etc.

Como gostava muito desse tipo de trabalho, eu me dedicava bastante, recebi muitos cumprimentos e até uma promoção por isso, e fui encarregado de estudar a construção de uma casa de cultura popular, incluindo museu, salões para exposições e apresentações, biblioteca e muitas coisas mais. Pois me demitiram, então quando estava no auge do trabalho.

Fiquei sabendo, por fofocas, do motivo da minha demissão e não acreditei. Mais tarde, uma pessoa que não me conhecia perguntou se eu era o Mouzar que trabalhou no Sesc. Respondi que sim e ele me contou a história dessa demissão, que havia sido passada a ele por um amigo, membro da direção da entidade. Aí acreditei.

Saiu no Pasquim uma matéria que fiz, um teste que mostrava como identificar “O arenista perfeito”. Para quem não sabe (há alguém que não sabe?), Arena era o partido político de sustentação da ditadura. Era um teste brincalhão. José Papa Jr., então presidente do Sesc, estava na Suíça e algum burocrata da entidade telefonou para o luxuoso hotel em que ele estava, e leu a matéria para ele. E naquele tempo em que não era nada fácil fazer uma ligação internacional. Papa Jr., então, telefonou de lá para o diretor do Sesc e o mandou me demitir.

A demissão, nessa circunstância, incluía um toque de perseguição: os patrões, quer dizer, os prepostos dos patrões na área de recursos humanos, se comunicavam e passavam informações sobre pessoas que não deveriam ser contratadas. Fiquei um bom tempo nessa lista dos malditos e tive que me mudar para o Rio de Janeiro, pois em São Paulo não arrumava nada. Fui pro Rio de Janeiro.

Mais demissão

Depois de nove meses no Rio, concluí que meus perseguidores já haviam se esquecido de mim. Amigos me avisaram que havia possibilidade de conseguir emprego no Senai paulista, fiz teste e passei, comprei um atestado de antecedentes políticos e sociais informando que eu tinha ficha limpa, sem passagens pelo Dops nem registros de atividades de contestação ao regime, e voltei para São Paulo. Naquele tempo, era comum entidades e empresas exigirem o tal papel, conhecido como “atestado ideológico”, dado pelo Dops.

Interessante é que ele demorava uns quinze dias para sair, mas como comprei de um despachante que tinha um canal lá dentro, porque pelas vias legais eu não o conseguiria, o meu saiu no dia seguinte. Quem tinha a ficha “limpa” demorou duas semanas ou mais para entregar o atestado ao Senai. Eu que tinha ficha “suja” entreguei em um dia.

Fiquei quase dois anos sem ser incomodado, no Senai, mas um dia o diretor, Paulo Ernesto Tolle, chamou a chefe do meu departamento à sua sala e, quando ela voltou estava tensa, me olhando com ar de interrogação. Contou porque o diretor a havia chamado. Segundo o que ela me disse com tom grave, de segredo, o diretor regional do Senac, que me conhecia dos tempos do Sesc, chamou o Tolle para um almoço dizendo que havia algo séria para lhe contar. E contou. Queria “prevenir” o colega. Disse que só então tinha ficado sabendo que eu estava no Senai: “Vocês contrataram um agitador sindical”.

Tolle estava surpreso com um grande número de filiações ao sindicato da área, o Senalba, coincidindo com a época da contratação de um grupo de profissionais para atuar na informação a distância, e eu era um deles (mas as filiações não tinham nada a ver comigo, foi coincidência mesmo) e acreditou na história. Ainda falei com a chefe: “Mas agitador sindical no Senalba? É o sindicato mais pelego que existe”.

Também por coincidência, um sujeito de alto cargo no Senai, um tal de Ophyr, que me achava feio, vivia dizendo que eu devia ser demitido porque achava que eu era comunista e andava mal vestido só pra deixar o Senai malvisto na avenida Paulista. Como se eu tivesse escrito na testa que trabalhava lá.

Depois, pelo que me disseram, o diretor do Senai consultou o presidente do Senalba (patrão pedindo a ficha de um trabalhador ao presidente do sindicato? Só por isso dá para saber o grau de peleguismo dele), um tal de Erevaldo, se eu era responsável pela enxurrada de filiações ao sindicato. O pelego suspeitava que ia surgir uma chapa de oposição nas eleições daquele ano e que eu participaria dela, e aproveitou para confirmar toda a história falsa, para me tirar de cena. Fui demitido, claro.

E gramei mais uns tempos de desemprego.

* Jornalista


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