quarta-feira, 23 de março de 2016

Agenda ambiciosa

* Por Mara Narciso


O meu discreto amigo, com menos de 50 anos, é um homem apaixonado não correspondido. Fechado, digno, não se mostra, assim, muitos não veem nada nele, exceto a sua exuberante dor, que flameja em seu rosto por todos os momentos do seu dia. Não se casou, não tem filho, não tem vida social. É um poeta trabalhador recluso. A sua amada, adorada, venerada musa é por ele cultuada como uma santa no altar. Não por ser santa, no sentido habitual da palavra, mas por ser inacessível, ter dono, estar noutra esfera e, aparentemente não ter interesse em dedicar-lhe nem alguns míseros minutos por dia. A prioridade dela são todas as outras coisas para depois, nalgum minuto parado do mês, vir mexer com meu sofrido amigo. Ela tem outro, aquele outro que deveria preencher-lhe as necessidades, mas tal parece não acontecer. Seu tempero existencial inclui municiar o amor desesperançado deste sofrido amigo. Este molho acaba dando motivação ao estranho casal: ele, louco de amor e ela interessada em manter o fã, o regra três, não deixando desaparecer o último sopro desse amor lacrimejante, que não se apaga porque ela não deixa, embora não o queira.

O casal em questão é gente simples. Ele reclama de si mesmo pelas ações e verbos não conjugados vida afora. Diz-se frustrado, omisso e pouco realizado, mesmo no trabalho. Refere não ter coragem e nem força para dar um ponto final a esse sentimento, porém tem energia e décadas para viver. Avisa que já fez a sua escolha: ou ela ou nenhuma outra. Nada ou ninguém o demoverá desse amor suicida do qual de vez em quando recebe um telefonema que, de tão esperado é atendido na aflição, com o coração a ribombar, quase a explodir. O toque do celular e o espiar do número dela o faz dar um salto. O tempo de silêncio mais prolongado, estratégia usada por ela, é castigo para torturar, manipular, bater até fazê-lo implorar. Há quem não queira escravo, mas há quem o aprecie ou até queira sê-lo. Então, medidos em conta-gotas, esses sons de escassas palavras, frias, sem promessas, são esmolas que aparecem de vez em quando, não para nutrir, menos ainda para salvar, apenas para evitar o desfecho letal.

Observar tal escolha, ver alguém optar por essa maneira de amar exige esforços que a racionalidade duvida. Alguns sofredores por vocação preferem esperar por uma coisa que nem nome tem do que não ter nada para esperar. Alguém atrevido, querendo interromper tal castigo, mesmo odiado pela audácia se vê impelido a falar: restos não são presentes e migalhas não são banquetes. Para com isso! Diante de tamanha coragem, vem artilharia pesada, mas já esperada.

O mercado feminino busca por homem trabalhador, bonito, inteligente, educado, sensível e apaixonado. Mas ele precisa valorizar-se, ainda que seja ajudado pela medicina e seus antidepressivos. Resgatar um bom amigo pode ser um desafio pretensioso, uma agenda ambiciosa por uma causa justa, que é impedir um coração nobre de se fulminar inutilmente. Caso não tenha forças para virar a mesa, suba sobre ela. De lá poderá ver qual é o seu verdadeiro tamanho e qual lugar do mundo poderá ocupar. O desencontro não precisa ser eterno.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



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