sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Rede de cobras


* Por Nilto Maciel


O nome de Pedro Campos aparecia duas vezes na notícia das “atrocidades cometidas pelos fazendeiros contra os índios”. O jornal só podia ser dos comunistas.
– Até rima com jornalista.

Os homens da fazenda olhavam para o chão, parados, feito marmotas. Nem tossiam.
– Cambada de putos!

Pedro Campos avançou para o jornal, plantou-lhe as garras, estraçalhou-o.
– Como se eu fosse um bandido.

Ninguém arredava o pé do alpendre, todos caladinhos, miudinhos.

O sol engatinhava nas fronteiras da fazenda.

***

Trouxeram o bode, que berrava e esperneava, e o amarraram ao pé da estaca.
– Venham ver para aprender.

Pedro Campos esfaqueou o tempo e o sol. Uma luz medonha queimou os olhos dos homens. O animal deu um berro sem fim, a faca plantada nas costelas. A segunda facada amputou-lhe uma perna. O terceiro golpe, profundo, correu-lhe a barriga de lado a lado. O sangue saltava longe e ninguém ria. Tripas penduradas, olhos esbugalhados, e os ais quase sumidos.

Cansado, coberto de suor, o fazendeiro rilhava os dentes, praguejava.
– Morre, diabo.

Os homens pisavam o chão com força, pregados. As bocas – sacos costurados a agulha fina.
– Estão vendo? É assim que vou fazer com eles.

O sol já brincava com as nuvens.

***

Pedro Campos fincou as esporas no cavalo, gritou, chicoteou o vento e desembestou no rumo da venta. Os homens também montaram e picaram os animais. Meteram-se em altas cavalarias, fazenda adentro. Os bichinhos do mato corriam da estripulia, escondiam-se detrás dos pés de pau. E as vinte patas de átila engoliam palmos e comiam léguas. A poeira do espanto levantava-se e morria. Vagarosamente.

***

Nos confins do mundo, o cavalo de Pedro Campos levantou as patas.
– Volto daqui. Vocês seguem.

Um relincho adiante viviam os índios. Os homens fossem espiar, de longe.
– Vejam se ainda estão lá.

O animal do fazendeiro se aquietou, comeu capim, mijou.
– E se já enterraram os outros?

Os quatro homens olhavam para a boca suja de Pedro Campos, em cima de seus cavalos, quietinhos, a comerem capim e mijarem.
– E só me levem boas notícias.

***

O dono da fazenda espichou-se na rede, pesadão, e os armadores rangeram. Rede nova, grande, presente dos índios. Cheinha de desenhos engraçados. De cobrinhas amarelas, encarnadas, verdes, azuis, pretas. Muito bonita mesmo.

Seus olhos fecharam-se, abriram-se. Fecharam-se, abriram-se. Fecharam-se. Escancarou a boca, e fiapos de carne de bode intrometiam-se entre os dentes. O peito subia e descia, subia e descia. Moscas passeavam sobre sua gordura, beliscavam-lhe as bochechas, cagavam-lhe a testa, varriam-lhe as ventas, brincavam de morrer na caverna de sua imensa boca.

Pedro Campos remexia-se, coçava-se, impacientava-se. Só faltava pular dentro da rede. Coçava os braços, as costas, a bunda. Picavam-no os demônios da sujeira? Pulou, zonzo, cambaleou, de pé. Não podia tirar um cochilo. A rede só podia estar muito suja. Maldizia-se, aos berros.

Todas as mulheres correram para a varanda, alarmadas. A sua, as filhas, as criadinhas.
– Que merda!

O sol descia a ladeira do oeste, morno.

As mulheres abraçaram e cheiravam a rede. Lambiam-na, apalpavam-na, miravam-na com os olhos da cor do medo.
– Está limpinha, patrão.

Pedro Campos foi se acalmando, conformado, sem coceiras. Só queria arrotar e dar uns peidos.
– Vão, vão, vão.

***

O sol se meteu debaixo da fazenda, os cururus não pararam mais de coaxar, nem o cricri dos grilos tinha fim.
– Vou esperar os homens lá fora.


A rede armada piscava os olhos para Pedro Campos. Todas as mulheres se trancaram nos quartos, solitárias, sem sono. E os homens não traziam as boas notícias.

***

Lá pelo primeiro canto dos galos, a mão submissa da mulher do fazendeiro apalpou o lençol. No telhado nenhuma estrela brilhava. A cama media cem léguas. O quarto não tinha tamanho. Seu coração cavalgava feito uma égua. Fechou as pernas e saltou para o desespero. Caminhou as infinitas passadas da noite. Os galos entoaram a marcha pavorosa. Alcançou a varanda. A rede ia e vinha, a ninar Pedro Campos. Extravagâncias de homem. Riu a fazendeira e encheu-se de dengues. Pisava com pés de lã o chão das novas núpcias. Os galos cantaram nova sinfonia. Abeirou-se do leito a mulher. E nenhum desenho de serpente mais havia no tecido. Como se o tivessem lavado seguidamente.

Tatuado de pequeninas cobras, porém, o imenso corpo de Pedro Campos jazia de frio.


* Escritor cearense.


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