sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

O preço do pioneirismo de Giovanni Boccaccio



O escritor checo, de língua alemã, Franz Kafka, afirmou, certa feita, que “a literatura é sempre uma expedição à verdade”. Eu acrescentaria: “Mesmo quando recorre à ficção, portanto, à fantasia”. Muitas vezes, as histórias inventadas tendem a ser mais verdadeiras, no sentido de retratar determinadas realidades, costumes e comportamentos do que acontecimentos reais, caso sejam mal-interpretados. Determinados escritores, vez ou outra, fogem dos padrões convencionais, os estatuídos e, mesmo que suas obras a princípio choquem seus contemporâneos (as novidades, geralmente, enfrentam resistências em quaisquer atividades), se o que escreveram for, realmente, de qualidade, acabam por se impor e se constituem em marcos de novos caminhos que, com o tempo se impõem e passam a ser seguidos por muitos, se tornando, praticamente, em novas regras.

Foi o que aconteceu, por exemplo, com Giovanni Boccaccio e com seu livro mais famoso, “Decamerão” (há quem grafe “Decameron”, o que dá na mesma). Ele inovou e sua inovação foi aperfeiçoada por muitos, ao longo dos séculos e hoje está consagrada, sem que a maioria sequer reconheça seu pioneirismo. Todavia, admitam ou não, ele é um marco no que se convencionou chamar de “Realismo” na Literatura de ficção. Conversando, dia desses, com amigos, a propósito dessa obra fundamental, alguns se disseram decepcionados com seu teor. Acharam muitas das cem novelas curtas que ela contém óbvias demais. Outros tantos, criticaram o tom muitas vezes caricato adotado pelo autor, exagerando nas virtudes e nos defeitos dos personagens envolvidos. Esse, porém, é o preço pago pelos pioneiros: a incompreensão.

É fácil criticar o que outros escreveram, mesmo que ninguém tenha escrito dessa mesma forma antes. Para valorizar Boccaccio e seu “Decamerão”, é indispensável contextualizar essa produção. É preciso atentar para a época em que o livro foi escrito, em como era a Literatura até que ele fosse redigido e como passou a ser depois. E nesse contexto, não há como não concluir que ambos, a obra e seu autor, são geniais. Não fossem, há tempos  já estariam esquecidos e, se eventualmente fossem lembrados, seriam citados, apenas, como exemplos de “exotismo” e nada mais. Mas... não é o que acontece. E nem poderia ser. O “Decamerão” é original desde sua concepção (é, como diriam os jovens no seu linguajar característico, uma “boa sacada”) e ao seu próprio título. Este é uma composição das palavras gregas “deca” (que significa dez) e “hemeron” (dias, ou jornadas).                 

Quanto às novelas, desafio, quem procura defeito nessas narrativas, a escrever cem histórias, absolutamente diferentes umas das outras, e torná-las todas “geniais”. Algumas serão (e no caso, são) melhores do que outras, como não poderiam deixar de ser. Tanto que várias delas inspiraram (e inspiram) escritores do passado e do presente, que escreveram (e escrevem) versões das mesmas, mas raras sequer parecidas às originais, quanto mais melhores. Em linhas gerais, o “Decamerão” começa numa manhã de terça-feira do ano de 1348. É quando sete moças e três rapazes resolvem deixar a cidade de Florença para fugir da peste negra. O grupo resolve exilar-se em um castelo, onde seus integrantes estariam a salvo da doença. Essas pessoas, porém, precisariam arrumar alguma ocupação para espantar o tédio. O que fazer? Para se distraírem, alguém sugeriu uma brincadeira, logo aceita por todos. Cada dia, um deles reinaria no castelo por uma jornada completa. E essa pessoa seria obrigada a narrar dez contos. Foi daí que surgiram as cem histórias que compõem o “Decamerão”. Isso não é original? É originalíssimo! Além do que, apresentava um desafio para o autor: o de inventar cem enredos diferentes para serem narrados pelas dez pessoas do grupo.

Contudo, a vida desses “exilados” não se restringia a inventar e narrar historinhas, o que já era, por si só, enorme desafio. Eles passaram dias entre a nobreza, em vida refinada, na qual se entrelaçam divertimentos campestres, conversas, jogos, jantares e danças. É, pois, um retrato fiel do comportamento dos florentinos daquele tempo. Enquanto os que ficaram na cidade morriam como moscas, por causa da peste negra, esses exilados nada faziam de prático e de útil para socorrer, de alguma maneira, seus desesperados e aterrorizados concidadãos.  Todos os dias da semana (com exceção de sexta-feira e do sábado, por respeito às conveniências religiosas), cada um contava uma história, com tema livre, sendo apenas decidido quem deveria narrar pelo rei ou rainha na véspera.

Há quem encare o “Decamerão” como  coleção de anedotas, como as que consagrariam, muito tempo mais tarde, o português José Maria Du Bocage, incorporado ao anedotário de Portugal (e posteriormente do Brasil). Quem pense assim, ou não leu o livro ou o fez sem a devida atenção que ele merece. Concordo com um crítico (não consegui identificar qual) que alerta que no “Decamerão” “há mais que riso, sexo e padres nas histórias criadas por Boccaccio. O tom cômico, que na obra assume um caráter crítico, se enquadra numa tradição mental típica da narrativa medieval”.

As novelas, que à primeira vista podem parecer sem nenhuma relação umas com as outras, seguem um padrão lógico, que com um pouquinho de observação, fica claro. Constituem um discurso progressivo.  Querem ver como isso é real? Observe-se que as primeiras histórias versam todas sobre vícios: pederastia, mentira, violência, representadas especialmente pelo pederasta, usurário, violento, mentiroso, falsário. Já as últimas tratam de algo que ocorre ainda nos dias de hoje: das provações que uma esposa suporta pelo marido. Quem critica o livro, insisto, ou não o leu e sabe, apenas, de uma coisa ou outra do seu conteúdo, por “ouvir dizer”. Ou não tem capacidade de entendimento, por isso perde o que ele tem de melhor. Na verdade, a magistral pena de Boccaccio traçou o que o tal crítico, que não consegui identificar, destacou como sendo: “Todo o tipo de encruzilhada humana, fruto da fortuna, do amor e da inteligência”. E isso na metade do século XIV, fazendo, em Literatura, o que ninguém havia feito antes. Como classificar um escritor assim se não com a designação que ele tanto fez por merecer, a de gênio? Sim, caro leitor, como?

Boa leitura.


O Editor.

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