sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O luar de Caraíba tudo explica


* Por Ciro dos Anjos


Há três ou quatro semanas não tenho tocado nestas notas senão ligeiramente, para acrescentar uma ou outra linha a esta ou àquela página.

Examinando-as, hoje, em conjunto, noto que, já de início, se compromete meu plano de ir registrando lembranças de uma época longínqua e recompor o pequeno mundo de Vila Caraíbas, tão sugestivo para um livro de memórias.

Vejo que, sob disfarces cavilosos, o presente se vai insinuando nestes apontamentos e em minha sensibilidade, e que o passado apenas aparece aqui e ali, em evocações ligeiras, suscitadas por sons, aromas ou cores que recordam coisas de uma época morta.

Analisado agora friamente, o episódio do carnaval me parece um ardil engenhoso, armado por mim contra mim próprio, nesses domínios obscuros da consciência. Tudo se torna claro aos meus olhos: depois de uma infância romântica e de uma adolescência melancólica, o homem supõe que encontrou sua expressão definitiva e que sua própria substância já lhe basta para as combustões interiores; crê encerrado o seu ciclo e volta para dentro de si mesmo à procura de fugitivas imagens do passado, nas quais o espírito se há de comprazer. Mas as forças vitais, que impelem o homem para a frente, ainda estão ativas nele e realizam um sorrateiro trabalho, fazendo-o voltar para a vida, sedento e agitado. Para iludir-lhe o espírito vaidoso, oferecem-lhe o presente sob aspectos enganosos, encarnando formas pretéritas. Trazem-lhe uma nova imagem de Arabela, humanizando o "mito da donzela" na rapariga da noite de carnaval. Foi hábil o embuste e o espírito se deixa apanhar na armadilha...

Não farei violência a mim mesmo, e estas notas devem refletir meus sentimentos em toda a sua espontaneidade. Já que as seduções do atual me detêm e desviam, não insistirei teimosamente na exumação dos tempos idos. E estas páginas se tornarão, então, contemporâneas, embora isso exprima o malogro de um plano.

Começarei por contar honestamente os motivos por que, durante as três últimas semanas, abandonei este caderno de apontamentos. São dois, e o segundo é fácil de dizer: foram as velhas. Mas o primeiro... ainda há pouco eu hesitava em confessá-lo: foi a moça.

Depois da quarta-feira de cinzas veio-me uma aura romântica que me pôs meio lunático, trazendo-me dias agitados. Presumivelmente curado da moléstia, posso contar as coisas tal e qual se passaram. Como na noite de carnaval, e já sem a desculpa do álcool e do éter, voltei, de novo, a essa a que vou chamando Arabela, por lhe ignorar o nome de batismo e porque, afinal, o que lhe dei se me afigura o adequado. Pus-me a procurá-la quase com aflição e, perdendo a noção do ridículo, confiei o episódio e minha desordem sentimental ao Silviano. Felizmente (e com certeza por solidariedade, visto que anda em maré análoga), ele não fez troça. Pelo contrário, ouviu, sério, a confidência.

Podem rir-se de mim, mas os namorados me compreenderão: amei, como se se tratasse de um ser real, aquilo que não passava de uma criação do espírito. A vida não se conforma com o vazio, e a imagem da moça encheu-me os dias.

Tive noites difíceis, bebi algumas vezes e andei como vagabundo pelas ruas. Até o chefe da Seção notou minha inquietude e fez-me assinar um requerimento de férias: "O senhor está precisando de repouso e deve aproveitar a ocasião. O Secretário está fora, e temos pouco serviço." (Na verdade nunca tivemos serviço, e jamais conheci ficção burocrática mais perfeita que a Seção do Fomento...) Em tal estado de espírito, é fácil de ver que eu não poderia retomar estas notas.

Devo retificar, nesta página, o que atrás foi dito sobre o amanuense que espia o amanuense e lhe estiliza o sofrimento. Observo agora que o namorado, no momento preciso de sua agitação sentimental, não é capaz de se desdobrar ao ponto de permitir ao espírito, quando o coração bate desordenadamente, estudar, para fins literários, os movimentos desse desvairado músculo. As modificações que a paixão determina em nossa substância e a diversa visão, que ela nos proporciona, dos seres e das coisas, poderão vir lucidamente, mais tarde, ao plano da nossa análise, quando, tudo já serenado, o espírito calcula e mede mas certamente não são suscetíveis de registro, no instante em que devastam nossa sensibilidade. E ninguém o ignora: a literatura das emoções é feita a frio, e a memória ou a imaginação é que reproduz ou cria as cenas passionais. No momento da devastação, alma e corpo se solidarizam.

Eu pediria inutilmente o socorro do bom senso ou da análise nas horas em que vivi a perseguir uma imagem que teria um terço de realidade e dois de fábula. Naquelas horas, entreguei-me inteiramente aos secretos impulsos, percorrendo toda a cidade em busca de Arabela.

Postava-me nos logradouros públicos, penetrando a multidão, não muito convicto, e contudo esperançoso. Muitas vezes entrevi uma figura gentil e fui, em vão, ao seu encalço. Logo verificava o engano. É extraordinário que nesta altura da vida me tenham acontecido tais coisas, mas o luar de Vila Caraíbas tudo explica, e o adolescente permanece no adulto.

Só passados alguns dias a tola idéia deixou-me, e a aventura de carnaval se foi dissipando no meu espírito. Quis, então, voltar a estas notas, que se vão tornando o centro de interesse de minha vida. Mas, na noite em que comecei de novo a folheá-las, ocorreu outro empecilho: o estado de saúde das velhas. Falarei nisso amanhã. Acho-me cansado e não há pressa.

(O amanuense Belmiro, capítulo 8, 1937.)


* Jornalista, professor, cronista, romancista, ensaísta e memorialista, membro da Academia Brasileira de Letras.

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