sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Soledad Barrett, depois da primeira anistia

* Por Urariano Mota


A grande mídia, os meios de comunicação fizeram absoluto silêncio nos últimos dias para a notícia de que a guerrilheira Soledad Barrett recebera a sua primeira anistia.

Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia fez o comunicado em 11 de dezembro. Mas a notícia correu apenas no peito da parcela mais civilizada do Brasil. Notem, a guerrilheira que foi mulher do cabo Anselmo, e por ele fora entregue grávida ao assassino Fleury, com mais 5 bravos militantes, bem que merecia o conhecimento geral do seu primeiro anúncio de justiça.

A imprensa do capital não fala, mas os artistas e militantes de direitos humanos bem sabem a importância de Soledad Barrett. No romance que agora escrevo, cujo título provisório é “Em busca do terrorista”, tenho a ambição de fazer um inventário da geração dos socialistas que eu vi. Nele, a bela Soledad reaparece como uma das personagens. Divulgo aqui um pequeno trecho da sua volta.

“Na noite em que acabamos de ver a comovente recriação de Soledad no palco do teatro Hermilo Borba Filho, quando a atriz Hilda Torres entrou em transe da personagem Sol levada à cena, transe naquele sentido dos aparelhos, dos médiuns em terreiros, depois da mágica hora em que Soledad ressurgiu, depois disso no café, no pátio do teatro Hermilo, eis que a filha única de Soledad, a sempre menina e jovem Ñasaindy, se aproxima e abraça o ex-preso político Karl Marx. (Não se espante jamais o leitor que a ficção se misture ao real nestas páginas. Não é método nem artifício, é da realidade vista e testemunhada.) Naquele instante em que eu conversava com Marx, Ñasaindy vem e lhe dá um súbito abraço. Então Marx para e com os olhos rasos lhe fala, com a voz embargada:

- Parece que estou abraçando a sua mãe. Ela era assim.

Se fosse um poema, talvez a frase acima encerrasse um verso. Mas esta é uma narração e o narrador não recebe a misericórdia de ser humano em uma linha apenas. Quero dizer, primeiro do que tudo. Quarenta e dois anos adiante, o abraço da filha, o rosto, o calor da filha reacendia em Marx a ternura da mulher que havia sido destruída no corpo, e depois passaria todo o futuro próximo a vagar como se fosse alma de mãe desnaturada e terrorista. Em segundo lugar, digo que na reconstrução da vida, difícil é dizer o que vem primeiro. Soledad está no quintal da casinha de Marx. Da cozinha ela fora até o quintal, e conversa com as companheiras de Marx e Lenin, os dois irmãos assim nomeados pelo pai, velho comunista. As mulheres sentadas fazem sapatinhos de croché para o bebê que Soledad espera. Dizem das mulheres grávidas que ficam mais belas. Mas ao viço natural das cores há na mulher que daria à luz, que engravida em angústia, uma sombra, um olhar que não vai ao futuro, que se furta e se dirige ao chão. Assim foi com Maria, em um subúrbio do Recife em 1958. Assim é com Soledad, em dezembro de 1972. Ali, entre as mulheres do povo em Jaboatão, os silêncios, a finura e gentileza de Soledad ganham a reputação de “moça muito educada”. O que vale dizer, há nela um tom de voz que não se eleva, uma atenção absoluta ao que as companheiras falam, um sorriso triste às confidências femininas onde existe solidariedade sem que se pronuncie esse nome. E, justiça seja feita, na beleza da estrangeira não se vê ameaça, porque Soledad não se insinua ou se exibe, antes procura anular qualquer fetiche de conquista no contato com os homens.  Nada de sorrisos descabidos para ser simpática, o que o vulgo masculino sempre interpreta como um convite. Nada de palavras ambíguas, ou de estímulos à corte, ou de se pôr como sexo frágil para ser tratada como uma especial. Ali, ainda não o sabemos, mas Soledad vem de treinamentos pesados na guerrilha em Cuba, onde rejeitara qualquer privilégio, como em 2009 me contaria o ex-guerrilheiro Aton Fon, dentro de um ônibus no Rio de Janeiro. Ele a conhecera em Cuba.

- Como era Soledad? – eu lhe pergunto.

Fon apoia a cabeça no encosto da cadeira e fecha os olhos.

Eu espero, sorrindo íntimo, que ele fale sobre o encanto lírico das formas da mulher. Mas ele me responde, depois de um silêncio:

- Ela era muito, muito séria.

- Como assim? - pergunto.

- Ela rejeitava qualquer ajuda para o equipamento que carregava. Subindo a serra, ela rejeitava. ‘Eu sou igual ao companheiro’, ela dizia. ‘Eu me viro sozinha’.

- Ela era uma das poucas mulheres no treinamento de guerrilha. Você nunca se enamorou dela? – pergunto.

- Eu nem cogitava.

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Uma repórter de bom coração, com mágoa e emocionada, perguntaria ao cabo Anselmo muitos anos depois:

- Mas você amava Soledad?

Ele, recebendo a susto o golpe da pergunta, procura ganhar tempo :

- Eu?.... Olha, é um sentimento difícil pra mim. Ela era uma pessoa linda, poeta, falava várias línguas... O que aconteceu com ela não foi culpa minha, entende? Foi ela quem se condenou, não fui eu. Por mim, ela estava fora do massacre.

- E por que você não a avisou?

- Está louca? Eu ia ser morto se abrisse pra ela o que eu sabia.

- Morto por quem? Por ela ou pela repressão?

- Por ela, claro. Sol ... ela era uma pessoa muito ideológica. Cruel, com aquela carinha de santa.

- Ela era cruel? – a repórter pergunta tendo na lembrança a imagem do corpo de Soledad no necrotério. – Cruel?

- Você nem imagina do que são capazes os comunistas. Eles matam mesmo.

- Você está vivo.

- Sim, só Deus sabe como. Eu fui o sorteado pra sobreviver.

A repórter para e não quer saber se ele atribui à roleta da vida o seu plano sistemático de infiltração, entrega de companheiros e permanentes novas quedas. Ele, o sorteado. A ironia não deve descer a esse ponto. A repórter se preocupa com algo, para ela, mais essencial.

- Mas você amava Soledad?

- Olha... eu amava Soledad. Mas um amor à minha maneira, entende?

- Como assim, à sua maneira?

- Assim... eu tinha afeição, amor por ela. Mas o amor pra mim é uma coisa prática, entende?

- Entendo. Sacrificar a sua vida pela amada, nunca.

- Isso é romantismo.

- E você se ama, Anselmo?

- Claro. Eu sou um cara normal.

Então Anselmo sorri com um sorriso que não ouso adjetivar. Ele poderia ter falado: ‘Amo a mim mesmo acima de todas as coisas. Amo só e somente a mim’, e não seria mais eloquente que a fala ‘eu sou um cara normal’. Ao se expressar assim, ele também quis dizer: se fizerem um matadouro, se sangrarem uma mulher feito porco, eu não sou o porco. Esse bicho destripado não me diz respeito. Não importa se o porco é Soledad, se lhe arrancaram o feto a porrada, não é comigo, eu não sou a porca Soledad. Eu sou um cara normal. Eu me amo. Eu me amo a mim mesmo, só a mim, somente a mim e a mais ninguém. Com todas as minhas foças, esperteza e inteligência. Durmo bem, do alto do meu conforto. Porco é quem é sangrado na tortura. Eu, coitado de mim, tenho horror à sujeira do sangue. Eu sou um cara educado, com alma de artista, de formação cristã, entende? Mas não sou Cristo. Nem Cristo nem porco.

Então a repórter recolhe o gravador, porque sabe agora que o cabo Anselmo está em um domínio onde o amor e a solidariedade não têm lugar nem razão de ser. Ele é um extraterrestre que não entende a língua dos que sentem a dor alheia. De repente dá nela uma vontade de tocá-lo para ver se ele é mesmo de carne e osso. Mas assim não faz por ter medo de que ele transmita um vírus de brutalidade e cinismo, que no Brasil ainda não têm vacina ou remédio”.



*Na Rádio Vermelho http://www.vermelho.org.br/noticia/274271-35


* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.



Um comentário:

  1. Reli um pouco confusa sem saber ao certo se é o mesmo que esteve aqui recentemente ou outro. Para mim é reprise recente, mas Soledad será a heroína de sempre. Cabo Anselmo não precisa de adjetivos.

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