domingo, 24 de janeiro de 2016

Paisagem de interior* I

* Por Pablo Uchoa


A cidade tem 10 mil habitantes, mas poderiam ser 3 mil. E ainda assim seria o cemitério a parte dela que mais cresce.

Desde muitos anos, os mortos superam os vivos numericamente. Em tempos de estiagem, como este, a proporção pode ser de três defuntos para cada novo rebento por ano.

Do alto da colina, os mortos têm visão privilegiada do rastro que o rio, intermitente, deixou entre as pedras. Magro, o gado rumina sem ânimo o capim ressecado e amarelado, e olha com olhos inertes o sertanejo de cambitos bronzeados que lhe enxota as moscas.

– Sinhô devia ver isso aqui no inverno...

O prefeito prometeu reinstalar, até o fim do ano, o televisor preto e branco que concentrava as atenções na praça da cidade e que finalmente queimou, seis meses atrás. O mandatário anterior declarara os dias contados daquele aparelho em favor de outro, a cores, mas isso foi antes de ele abandonar o paço municipal sem deixar sequer um grampo ou peso de papel.

Desde então, os moradores gastam as noites de domingo ao lado do telefone público colado ao posto de saúde, e se ninguém recebe um telefonema, recolhem-se, quietos, mudos, deixam a praça e seus pés de castanhola para as cigarras farristas.

É o momento mais animado da pequena cidade. O zumbido forte dos insetos ecoa a um quarteirão da praça, hipnotiza os moradores. Até que mesmo as cigarras se recolhem, devolvendo à rua a mesma paisagem deserta e muda de interior.

No dia seguinte, apenas se é terça-feira, o posto de saúde reabre suas portas para a consulta do jovem doutor que atende com palavras curtas e econômicas, e comenta, com ar doutoral:

– Hum...– diante das mães suarentas que entram no consultório protegendo suas crianças sob saias de desenhos de flor.

O doutor distribui sulfato ferroso e remédio para verme, mas a recente falta de medicamentos na capital tem-lhe obrigado a ensinar apenas o soro caseiro, para desgosto das mães que fazem muxoxo e deixam o posto de saúde de olhos baixos.

Ao meio-dia o doutor coloca as maletas no carro com placa da capital, e desaparece na estrada. A cidade de 10 mil habitantes – mas que poderiam ser 3 mil, sem prejuízo para sua alma interiorana, pelo contrário – respira um calor seco, os cachorros, pulguentos, derretem à sombra das portas de metal que o comércio baixou no horário do almoço.

Só depois da sesta, uma a uma, as funerárias da rua principal reabrirão suas portas. Dispostos um ao lado do outro, os caixões com detalhes prateados e dourados homenageiam a parte mais numerosa da cidade.

Da soleira das portas, os velhos admiram os ataúdes, enquanto as velhas, com ainda uma ou duas décadas de vida pela frente, batem ovos para o bolo Luis Felipe. Meninas aprendem a pilotar suas bicicletas rosadas com pequenos cestos no guidão.

Um burro pateando sobre os paralelepípedos é o que há de mais ruidoso na cidade de interior. O fim da tarde é quase tão animado quanto a farra das cigarras nas castanholeiras.

·        Esta crônica faz parte da série “Paisagem de interior”.


(*) Cronista e editor do site www.narizdecera.jor.br. Vive atualmente na Inglaterra, dedicando-se a pesquisas no Institute for the Studies of the Americas, da Universidade de Londres. Autor do livro-reportagem “Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez” (Ed. Globo, 2003), menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog 2004.

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