quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

O filme e o passarinho


* Por Edilberto Santos


Quando você se aproxima da fase de sua vida em que já vislumbra a aposentadoria, momento em tese de regozijo por estar chegando o dia de você não mais sair de casa para o trabalho e virar “fiscal da natureza” remunerado, você passa a ter mais tempo para reflexões e por consequência, a assistir mais as programações da televisão.

Amigo e colega meu recém-aposentado me disse certa vez, que já havia se arrependido de sua aposentadoria preferindo o burburinho e tensão da Delegacia de Polícia a permanecer como está agora, posto que do dia para a noite se transformou em um “já que”.

Sem entender suas lamúrias e já preocupado com as minhas próprias, pedi explicações e ele me disse que quando estava na “ativa” acordava 07 horas da manhã e agora, “aposentado”, acorda 06 horas da manhã para levar o neto na escola e às 11:30 impreterivelmente, sai de casa para atender o compromisso de buscar na escola o neto que deixou de manhã, “já que” ele está aposentado e não custa nada levar e buscar o netinho no colégio durante a semana inteirinha.

Na volta dessa “missão” de levar o neto todo dia na escola, pensava em dormir o resto da manhã até chegar a hora de novamente sair para buscar o querido netinho no colégio, e ao chegar em casa eis que sua esposa sempre lembra de que está faltando alguma coisa na dispensa e, “já que” ele não está fazendo nada mesmo, pede para levá-la ao supermercado isso sem contar os outros compromissos dos seus demais familiares, que inclui sempre um pedido de carona “já que” ele está sempre “disponível” como aposentado, incluindo nessa lamúria eventual pedido para buscar um ou outro de madrugada no aeroporto ou mesmo após shows musicais. Virou “já que” depois de aposentado.

Pois bem, já nesta fase da minha própria vida em que vivo postergando a aposentadoria achando sempre uma boa desculpa para não me aposentar, volto ao tema do título para dizer que estava assistindo um filme que, para variar, não sei o nome e nem consegui vê-lo por inteiro “já que” dormi no meio do filme, e este mostrava uma cena em que um garoto andando por uma rua bastante arborizada, vislumbra um bonito passarinho em um das árvores e, incontinenti, saca do bolso traseiro de sua bermuda uma poderosa “baladeira” (estilingue).

Após cautelosa e caprichada mira, esticou o que pode a borracha e soltou o petardo para cima do passarinho que, na cena seguinte, já aparecia estendido no asfalto parecendo mais um passarinho empalhado do que recém-abatido, mas, filme é filme.

A cena seguinte já mostrava o menino carregando o passarinho com aquele ar de vitorioso como se tivesse acertado um alvo militar e, ato seguinte, mostrava o garoto depenando o passarinho com tamanha violência e raiva que me chamou a atenção, para logo observar que o personagem era um “garoto problema” para não dizer que era um moleque “marvado” ou mesmo um “desequilibrado mental” ou ainda “rebelde” ou para os íntimos, “doido” mesmo, isto para ficar só nesses adjetivos.

Obviamente que a cena me chocou e me levou imediatamente a abrir outra janela da minha memória, que aproveito para abrir enquanto ainda as tenho, para lembrar que na minha infância e pré-adolescência em Óbidos “balar passarinho” não era prática de moleque “marvado” e nem de “doido”, ou será que eu e minha geração éramos todos “doidos” e não tínhamos consciência disso?

Passo a refletir sobre isso para avaliar que o repúdio a essa prática hoje em dia, sem dúvida, está politicamente correta e consoante com a preservação da natureza e sua fauna, quando as pessoas repudiam a prática de “balar passarinho” como prática nefasta e desumana para com os indefesos animais.

Os passarinhos eram “balados” para puro deleite meu e dos meus contemporâneos em Óbidos e quando abatidos, alguns, como eu mesmo, certa vez, ainda tentei comer um deles assado “que diziam ser muito bom” e não consegui porque era só osso.

Será que eu “era” ou mesmo “sou” “desequilibrado mental” por ter agido assim na minha infância e pré-adolescência? E a minha geração de “baladores de passarinho” também está comprometida com essa suspeita?

Se algum de nós era ou é “doido” conseguiu disfarçar muito bem, pois, minha geração produziu luminares na literatura, nas artes, no direito, na medicina enfim, destacaram-se nas mais diversas áreas do conhecimento humano sempre com equilíbrio e sensatez em seus procedimentos, apesar de terem um dia em suas vidas também “balado passarinho”.

Avanço nessas reflexões de “semi-aposentado” para também lembrar, que não só de “balar passarinho” vivia minha geração de moleque do interior, mas, também, lá nas cercanias de Óbidos “agredíamos” a mãe natureza “caçando borboletas” que eram vendidas pela garotada para duas pessoas que as compravam e exportavam em bonitos quadros, e ainda promovíamos a “caça aos besouros” para também vendê-los para exportadores e safar algum trocado para o picolé no Bar Andrade, para o tacacá do “Pindoba” e para o gostoso “Rala-Rala” que eu sempre pedia com “bastante gelo” e era tudo o que o vendedor queria. Lembro também, que a barra de gelo era coberta por um pano que era escuro de tanto uso, para não dizer sujo mesmo.

Hoje em dia essas práticas são proibidas por lei em nome da preservação da natureza, e são tipificadas com o pomposo nome de biopirataria e outros crimes ditos ambientais, sofrendo severa fiscalização dos órgãos de proteção ambientais e das polícias notadamente do IBAMA, e hoje não mais vemos moleques caçando borboletas para vender em Óbidos.

Abro mais um parênteses no tema deste texto, para dizer que quando ainda morava e advogava em Óbidos em um bate papo descontraído com um querido e sempre simpático amigo que era o chefe do IBGE naquele Município, me disse ele naquela oportunidade que encontrava grande dificuldade para realizar pesquisas de campo no interesse do seu Instituto.

Explicava-me que quando seus pesquisadores iam para o interior do Município de Óbidos e lá se identificavam como sendo do IBGE, os caboclos entendiam serem aqueles “fiscais do IBDF” e saiam correndo para a mata ou mesmo pulavam no Rio Amazonas, com medo de virem a ser presos pelos fiscais do IBDF que fiscalizava a venda de couro de jacaré; a caça de animais em extinção; a captura da tartaruga e dos seus ovos; do “pitiú”; o desmatamento irregular enfim, era a antiga denominação do IBAMA e a sigla IBDF por si só já causava medo e pânico nos caboclos e pelo sim pelo não, IBGE ou IBDF dava tudo no mesmo e o melhor era correr.

Mas voltando ao tema e preocupado ainda com a mensagem do tal filme que sugeria que o moleque que balou o passarinho era “doido”, posso afirmar que por ter sido exímio balador de passarinho eu não sou “doido”.

Posso até ser “doido” por outros motivos, mas recuso o título de “doido” por ter um dia praticado o exercício preferido da molecada de Óbidos de “balar passarinho”, “caçar besouro”, “caçar borboleta”, “apanhar pitomba com baladeira”, “apanhar manga com baladeira”, “balar calango” (não era no quintal do Machadinho) e também por ter-me exercitado na “arte” de me aproximar por trás das “cabas” que estavam bebendo água da vala, para com uma linha fina laçá-las pela cauda sem apertar muito o laço para não “torá-las” no meio.

Tão logo a escolhida (coitada) acabava de beber água, voava sob meu estrito controle como se eu estivesse empinando uma pipa, e até “flechava” a pobre da “caba” (colocá-la para voar em um “mergulho” como se fosse um avião de caça) que de tanto esforço para se ver livre do laço acabava perdendo a cauda (é feio dizer que ela perdia mesmo era o rabo?) caindo despedaçada ao chão cortada ao meio como se tivesse sido abatida por um míssil.  Afinal, qual a diferença entre morrer cortada ao meio ou morrer esmagada por uma chinelada?

Diante da “perda” do meu instrumento de dominação do espaço aéreo da rua bacuri onde eu morava, partia eu e meus outros colegas (doidos?) que haviam sofrido a mesma perda, para a captura de novas cabas com vistas a repor nossos “equipamentos” de exercício aéreo. Chamávamos essa “salutar diversão” de “empinar caba” e promovíamos até campeonato.

Lembro também de ter lido no site Chupaosso e/ou no Jornal Folha de Óbidos, que outros colegas obidenses narraram suas próprias peripécias de moleque dizendo que amarravam uma peça de pano ou algo inflamável no rabo do urubu e tocavam fogo, permitindo após essa “proeza saudável” que o mesmo voasse com aquele rabo postiço incandescente que pouco a pouco se aproximava da pobre ave. E eu é que sou o “doido” por ter balado passarinho?

Apesar de tudo, continuo contestando o filme para dizer que não sou e nem fui “doido” só porque, juntamente com meus colegas balava passarinho, balava calango, empinava caba, morcegava o carro do padre etc... etc... e põe etc.... nisso.

Você já viu algum “doido” dizer que é ”doido”? Sempre dizem que são “normais” e eu sigo um caboclo que gostava de falar “difícil” e que disse com ênfase ao ser interrogado sobre estar falando a verdade: “eu digo, repito e tripito...” eu também “afirmo, reafirmo e triafirmo” tal qual o personagem de um programa humorístico de televisão: “eu sou nnnoorrrmalll”. Acredite se quiser !

Belém-Pa, 13 de janeiro de 2016


* Escritor e advogado paraense.

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