sábado, 23 de janeiro de 2016

Glauber, a profecia no deserto

* Por Nei Duclós


Glauber Rocha é o tempo presente amaldiçoado pela História. Sua pregação é feita no deserto (rural em Deus e o Diabo, urbano em Terra em transe) porque o deserto, pela ausência, destaca o humano entregue ao horror das contradições. Nele, a palavra incorpora o futuro quando é murmurada pela fúria, e elimina a esperança para repor a verdade. Não há, no cinema mundial, nada que se compare ao maremoto dessa criação sem limites, que nos abate em ondas toda vez que vemos as imagens que produziu, como se o delírio fosse nossa única realidade e a guerra nosso destino. Glauber assume o que há de pior na cordialidade brasileira, esse comportamento ciclotímico ditado pelo coração. Ele colocou a vontade no cérebro cozinhado pelo fogo e nos encara com o gênio do seu carisma.

Maldição


Lembro a primeira das inúmeras vezes que vi Deus e o Diabo. As pessoas levantavam fazendo gestos indignados e saíam aos berros. Não havia concessões naquele filme maldito. Mas não havia como escapar de Corisco abrindo os braços e gritando num zoom demolidor. Foi quando Othon Bastos tornou-se o maior entre seus pares e nos cuspiu fora como se fôssemos as vítimas  daquele cangaço cultural. Glauber nos transforma em formigas predadoras que precisam ser eliminadas. Ele nos tortura com o longo assassinato de uma criança nas mãos do beato negro e nos coloca sob a capa horripilante de Antonio das Mortes, aquele personagem que, quando atirava, fazia Luis Buñuel saltar da cadeira.

Qual a profecia desse cinema? A de que estamos condenados pelo que somos e morreremos na guerra que nosso ódio e nossa vergonha produziu. "Ainda vai haver uma guerra grande nesse sertão", predisse Antonio das Mortes. Estamos nela. Glauber eliminou as ilusões no messianismo revolucionário encarnado por Jardel Filho e colocou Glauce Rocha como a percepção torturada da consciência impotente. Sabemos onde estamos metidos, mas não queremos assumir esse horror.

Fontes


Glauber nos desperta pelo susto e corta nossas cabeças. Seu inferno é o Brasil, país que tenta decifrar filmando pelo avesso. Estávamos ainda embalados pelas alegres comédias da Atlântida quando o sol tomou conta da tela e havia sangue nela. Os tiros fajutos do faroeste americano sumiram quando Glauber engatilhou o rifle de sua saga. Jamais haveria Sam Peckinpah com seus massacres em câmara lenta se antes Glauber não tivesse destruído as soluções bem comportadas da violência. Glauber bebeu em fontes diversas para compor sua trama. Reproduziu os planos das procissões de A fonte da donzela, de Ingmar Bergman, e do La Strada, de Fellini. Bebeu em A árvore dos enforcados (The hanging three, 1959), de Delmer Daves. Nesse filme, Glauber retirou o visual do seu Antonio das Mortes (a capa até o chão, o chapéu, a arma), inspirado no mendigo encarnado por George C. Scott (visual que foi chupado até o osso, não de Daves, mas de Glauber, por Sergio Leone).

Glauber tinha bebido em Terra Trema, de Visconti para filmar seu Barravento. Ele não é, portanto, um cineasta de geração espontânea. Mas quando decidiu fazer um filme com a câmara que comprou por ter vendido o fusca doado pela família, resolveu ir fundo, e queimou seus navios de areia. Pagou por isso. Foi morto pela indiferença dos contemporâneos, pois tudo Glauber poderia agüentar, menos a espera ansiosa dos outros pela sua morte prematura. Então foi-se, carregado pela sua mensagem. Ainda não merecemos Glauber Rocha, a profecia que se cumpriu no seu corpo torturado e que se cumpre agora, na guerra total do país que desistiu de ser uma nação.

* Autor de três livros de poesia: “Outubro” (1975), “No meio da rua” (1979) e “No mar, Veremos” (2001); e de um romance: “Universo Baldio” (2004). Jornalista desde 1970 e bacharel em História. Trabalha atualmente em Florianópolis, onde é editor-executivo de duas revistas.




3 comentários:

  1. Glauber é um mistério e a análise dele é uma festa.

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  2. Sou autor de vários livros de poesia. Além dos citados, publiquei Partimos de Manhã (2012), e os ebooks Arraso Poemas de Amor e Pampabismo e Enigminas: Conversos (2012) Cálida Palavra (2013), Verso Esparso e Trovador (2014) e Semeador (2015). Além do romance citado, sou autor de Tudo o que pisa deixa rastro (romance, 2015, edição impressa do autor, selecionado pela Petrobras Cultural). Há anos deixei de ser editor executivo de duas revistas em Florianópolis. Por favor, atualizem meu perfil.

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  3. Já fiz anteriormente a correção do meu perfil, mas ele permaneceu idêntico, imutável, eterno.

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